Autor

Duarte Gomes

Data: 03/12/2020

Um guarda-redes, um avançado, um choque… fortuito ou suficiente para penálti?

O futebol não pára de nos oferecer lances interessantes para discussão e isso é excitante para quem, como eu, gosta tanto deste jogo.

As situações que são mais redondas, redondas são. Não acrescentam nada, não permitem contraditório, não nos fazem pensar ou evoluir.

Uma mão evidente, uma agressão ostensiva, uma rasteira clara são lances óbvios e fáceis de resolver. São como são, ponto.

Mas há outros diferentes, mais rebuscados e matreiros e é sobre um desses que quero aqui refletir hoje. Refletir é mesma a expressão certa porque, como já aqui referi, nesta coisa da arbitragem, não há Maradonas. Não há craques.

Um comentador faz análises técnicas baseadas no seu conhecimento da lei, na sua experiência de campo e na interpretação que faz do caso concreto. Em situações mais dúbias, não há carimbos, não há “preto no branco” e quem vos disser o contrário está a mentir.

Um dos bons exemplos acontece, por exemplo, com a forma como interpretamos a questão dos choques entre guarda-redes e atacantes. Afinal de contas, quando é que são ilegais e quando é que são inevitáveis? Quando é que devem ser punidos e quando é que são apenas fruto das circunstâncias?

A discussão é antiga. Tem barba e cabelo e raramente permite consensos, por isso vamos tentar refletir sobre ela com cabeça, tronco e membros.

Comecemos pelo princípio: o que é mesmo essa coisa do choque inevitável entre dois jogadores?

Por definição, “choque” é o encontro violento entre um corpo em movimento e outro (ou outros) parado ou em movimento. Já “inevitável” é aquilo que não se pode impedir. Que não pode ser evitado.

Ora, em campo, um “choque”, em princípio, é para punir. Já o “choque inevitável” não.

Se eu colidir com um jogador e derrubá-lo por força da forma intempestiva como abordei o lance, estou a carregá-lo. Infringi. Por outro lado, se eu chocar com ele de forma absolutamente inevitável, sem que pudesse fazer nada para travar o movimento ou evitar a colisão, então não cometo falta. Em teoria, até é simples.

Tomemos o exemplo do que acontece, com frequência, entre guarda-redes e avançados.

Por vezes, chocam de forma que não era possível impedir ou evitar. Isso é normal. Perfeitamente normal. As leis de jogo não punem contactos acidentais ou fortuitos. Se não houver imprudência (que é a falta de cuidado na abordagem de um deles), negligência (que é não medirem as consequências/perigo para o outro) ou força excessiva (que é o uso de uma força a mais, desnecessária e perigosa), tudo certo. Segue jogo.

Coisa diferente é a “colisão” provocada deliberadamente por um só jogador. É o risco que ele corre ao abordar um lance com movimento claro e ostensivo na direção do adversário.

A linha, reconheço, é ténue e deixa margem para dúvidas, mas a ideia subjacente à punição (ou não) passa, mais do que pela letra da lei, pelo conhecimento que se tem do jogo e das suas dinâmicas. Passa por sentir o que se vê (e ouve) em campo, por saber de bola e perceber que, se é verdade que há jogadas que não podiam ter outro desfecho, há outras que podiam ser evitadas.

É quase sempre uma questão de feeling.

Nos recentes Marítimo/Benfica e e FC Porto/Manchester City aconteceram dois lances muito semelhantes, com características em comum:

– Em ambos o atacante deslocou-se na direção da linha de baliza, para jogar a bola;

– Em ambos os guarda-redes optaram por abandonar a sua zona de baliza e correr na direção dos adversários;

– Em ambos o atacante tocou primeiro na bola e foi depois derrubado pelo movimento de colisão promovido pelo GR;

– Em ambos os guarda-redes chegaram tarde ao lance (depois dos adversários tocarem na bola) e derrubaram os opositores, ou com contacto físico direto ou através do contacto com a bola.

Na minha leitura (fundamentada nas imagens televisivas), ambos foram irregulares e deviam ter sido punido com pontapé de penálti.

Num e noutro não aconteceu o tal “contacto fortuito”, a tal ação natural. É certo que, em nenhum, houve intenção do GR em fazer falta (isso parece-me óbvio), mas essa é uma questão tecnicamente irrelevante.

Chocar com um adversário de forma legal pressupõe que nenhum jogador atue de modo diferente sobre o outro. Nestes lances, o lesado foi só um e sempre o mesmo: o atacante.

Se, após jogar a bola, um jogador que não se desloca em direção ao adversário for “abalroado” por ele, sofre falta. Se um jogador que tocou antes na bola for derrubado por força de um contacto impetuoso promovido apenas e só pela movimentação do opositor no seu sentido, sofre falta.

Fica a minha visão sobre este tipo de lances.

Façam a vossa reflexão, sem esquecer que uma opinião, se não for fundamentada, não é uma análise técnica. É apenas e só uma opinião.

Lance do Marítimo – Benfica

Fonte: Expresso