O lance do golo anulado a Benzema é um hino à dificuldade de análise que o futebol pode proporcionar. Momento absolutamente “diabólico” para qualquer equipa de arbitragem, tal o conjunto de variáveis ali em jogo.
Compreendo os que defendem a “teoria da simplificação”, procurando respostas factuais, claras e imediatas para todas as situações de jogo. A questão é que o futebol não é uma ciência exata e há lances (como este) que são tudo menos claros e inequívocos.
Convém perceber que o futebol moderno vale mais do que um mero resultado para o totobola. Hoje, um só golo pode impactar diretamente numa renovação, rescisão ou carreira. Pode significar prestígio ou humilhação, reconhecimento ou derrota, milhões ou tostões. É preciso aplicar as regras com sensatez, acerto e certezas.
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BENZEMA 😱 Festival de "deixa que eu dou-lhe", e no fim estava em fora de jogo 🤷#ChampionsELEVEN pic.twitter.com/Wlz7FLinuJ
— ELEVEN Portugal (@ElevenSports_PT) May 28, 2022
A ANÁLISE TÉCNICA
Acompanhem-me no raciocínio, passo a passo:
1 — A bola tocada por Benzema foi intercetada pelo pé direito de Konaté, viajou para o corpo de Allison (no solo, após tentar a mancha) e ressaltou ligeiramente para a frente;
2 — A única grande dúvida ocorreu precisamente aí: terá sido Valverde quem tocou na bola ao tentar rematar ou foi o pé direito de Fabinho, que chegou primeiro? Pior… será que a bola foi tocada, na dividida, pelos pés de ambos em simultâneo? Nenhuma imagem o esclareceu cabalmente, o que legitima qualquer interpretação possível;
3 — Porque é que é muito relevante saber se foi Valverde quem tocou na bola? Porque seria aí que se definiria eventual infração ao fora de jogo: o “momento do passe”.
Benzema estava, de facto, adiantado (só tinha um defensor entre si e a linha de baliza adversária), mas se aquele toque fosse apenas de Fabinho, nunca haveria irregularidade: na prática, teria sido o francês o último atacante a tocar na bola antes dela regressar a si próprio. Percebem?
4 — O certo é que, depois desse toque (?), Konaté voltou a tocar na bola com o pé direito e essa foi a seguir jogada pelo joelho esquerdo de Fabinho, que se fizera ao lance, em carrinho deslizante. A seguir voou na direção de Benzema, que marcou.
Reparem no circuito cronológico da jogada:
— Passe de Benzema;
— Bola no pé esquerdo de Konaté;
— Bola no corpo de Allison;
— Pé de Fabinho, de Valverde ou de ambos (?);
— De novo pé de Konaté;
— Joelho esquerdo de Fabinho;
— Benzema, golo.
É muita complicação, não é?
O que motivou a decisão do árbitro assistente, validada demoradamente pelo VAR (coisa rara na UEFA), foi a interpretação de que Valverde tocou mesmo na bola e que todos os toques posteriores — de Konaté e Fabinho — foram uma “defesa” e um “ressalto”, respetivamente.
Ou seja, no momento do alegado toque do avançado espanhol, Benzema estava offside e tudo o que aconteceu depois não foram toques deliberados, portanto fora de jogo.
Compreendo a interpretação, mas discordo e explico-vos porquê:
1. É muito raro anular-se um golo por fora de jogo depois da bola tocar, ser jogada, ressaltar ou ser defendida por tantos defesas (no caso Konaté, Allison, Fabinho (?), Konaté de novo e Fabinho mais uma vez). Pode acontecer, mas seria muito estranho se, após tanta interação da bola com os defesas, nenhum dos contactos fosse interpretado como “deliberado”.
2. Partindo do princípio que foi mesmo Valverde a tocar na bola (muitas dúvidas mesmo), a grande questão aqui é saber se o último toque é dado na direção de Benzema — o do joelho esquerdo de Fabinho — foi deliberado ou mero ressalto.
Eu acho que foi deliberado.
A CONCLUSÃO
Fabinho não estava em posição de “defesa” da sua baliza, mas virado de frente para ela. O brasileiro escolheu abordar o lance, optou por fazer-se à jogada e esticou deliberadamente o corpo/joelho na direção da bola.
Haver “ressalto” pressupõe uma espécie de tabela involuntária num corpo estático, que nada faz para disputar um lance. Há ressalto quando uma bola bate na cara, na perna, no braço ou nas costas sem que o atleta tenha feito qualquer gesto nesse sentido.
Repito: Fabinho, de frente para a sua baliza, optou por abordar o lance e por meter lá o pé, o corpo e o joelho. Houve movimento ativo na direção da jogada. O seu tackle foi voluntário.
O joelho esquerdo do jogador do Liverpool arrastou ostensivamente no solo e foi na direção da bola, seguindo daí para Benzema. Isso qualifica um “passe deliberado”, não um ressalto inadvertido.
Golo mal anulado, em lance — convém repetir até à exaustão — suscetível de ter outras leituras.
Como não amar o futebol?