O VAR por quem o conhece ao detalhe, David Elleray

Diretor Técnico do IFAB e consultor do CA da FPF destaca desempenho eficaz e muito positivo da vídeo-arbitragem

David Elleray é uma das pessoas mais habilitadas no mundo para falar do VAR. Este inglês de 66 anos, antigo árbitro internacional e instrutor da FIFA e da UEFA durante vários anos, é, desde maio de 2016, o Diretor Técnico do IFAB, o International Football Association Board, organismo que define as Leis do Jogo.

Membro da Ordem do Império Britânico (recebeu a distinção em 2014 pelos serviços prestados ao Futebol), é, desde janeiro de 2018, consultor do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol para o VAR. Convidado (muito) especial do 20.º podcast “Ciência e Futebol”, David Elleray destaca o desempenho “eficaz e muito positivo” do VAR. “É inegável que o uso do VAR em Portugal trouxe muitos benefícios, trouxe mais decisões corretas na marcação de grandes penalidades, na amostragem de cartões vermelhos e na invalidação de golos irregulares”, aponta o especialista inglês.

David Elleray nota que “à medida que o VAR se vai aperfeiçoando e se vai tornando mais eficaz tecnicamente, a duração das paragens tem-se reduzido”.
E lembra: o sucesso do VAR, um pouco por todo o mundo, foi tão rápido que acabou por apanhar toda a gente de surpresa. “Estamos a falar de uma revolução.”

Na sua opinião, e depois de quatro épocas de implementação desta tecnologia, é correto afirmar que o VAR contribuiu para melhorar as decisões dos árbitros e, como consequência, também o jogo?
Penso que é inegável que o uso do VAR em Portugal trouxe muitos benefícios, trouxe mais decisões corretas na marcação de grandes penalidades, na amostragem de cartões vermelhos e na invalidação de golos irregulares. Nesse sentido, podemos sim falar em mais justiça e em melhores decisões. O impacto tem sido positivo.

No nosso estudo, conclui-se que o VAR é apenas o sexto fator no tempo não útil de jogo, depois de elementos como os livres, os lançamentos laterais, os pontapés de baliza, os cantos ou até as substituições. Estes dados surpreendem-no?
Não, de forma alguma. Já durante o período de testes que fizemos antes de implementarmos o VAR em competição, nessa altura já tínhamos identificado que o VAR traria interrupção de um minuto/um minuto e meio de três em três jogos. Ora, isso dá perto de meio minuto por jogo, o que não é nada, comparado, como o vosso estudo bem demonstra, com o tempo que se perde com o jogo interrompido com os livres. O tempo de paragem que o VAR implica é mínimo e, na verdade, na maior parte das vezes esse tempo é adicionado no final de cada parte. Por isso, ainda que haja obviamente uma paragem, esse tempo não é propriamente perdido.

Quando este sistema começou a ser implementado, receava mais do que agora quanto a um eventual agravamento do tempo não útil de jogo, que não se terá verificado?
Sim, parece-me claro que à medida que o VAR se vai aperfeiçoando, se vai tornando mais eficaz tecnicamente, a duração das paragens tem-se reduzido. Desde há muito tempo que a razão para a recusa de “replays” era a de que as pessoas não queriam que o quase ininterrupto “flow” do jogo fosse interrompido por decisões a serem revistas. E foi por isso que decidimos que o VAR só poderia ser usado nos momentos mais relevantes, mais decisivos. Só mesmo nos momentos cruciais! Ora, isso cinge a sua atuação a golos, penáltis e cartões vermelhos. E, claro, há depois as pessoas que vêm dizer: ‘então também deviam usar para cartões amarelos e para os cantos, porque podem surgir golos de cantos que não eram…’ Só que, ao mesmo tempo, as pessoas surgem a dizer ‘não queremos que o nosso Futebol se transforme em futebol americano: stop/start’. Por isso, tivemos que chegar aqui a um ponto de compromisso, a algum equilíbrio. Parece-me que, no global, esse compromisso é bastante equilibrado. E vocês mostram, nas vossas estatísticas, que, no caso português, é frequente um jogo ser decidido por uma “review” do VAR. Mesmo que haja pessoas que não gostam de ver o jogo parar, a verdade é que com paragens muito pequenas se têm corrigido decisões fundamentais e, como vocês mostram no estudo, isso acaba por ter um peso no tempo não útil muito reduzido, quando comparado com outros fatores previamente existentes: livres, cantos, pontapés de baliza.

As coisas parecem estar no bom caminho mas, há, naturalmente, aspetos a melhorar no sistema. O quê, em concreto? O que deverá ser ainda corrigido? Será o VAR um sistema em permanente ‘work in progress’ ou vê esta tecnologia já próxima do seu ponto ótimo?
Acho que o sucesso do VAR, um pouco por todo o mundo, foi tão rápido que acabou por apanhar toda a gente de surpresa, se nos lembrarmos que foi há apenas cinco anos, precisamente, que tivemos, pelos primeiros dias de agosto de 2016, o primeiro jogo oficial com VAR, em Nova Jérsia, Estados Unidos, e que menos de dois anos depois, esta tecnologia já estava a ser usada no Campeonato do Mundo da Rússia, em 2018. Mais de cem países já usam ou planeiam utilizar o VAR. Por isso, estamos a falar de uma revolução. Há algumas áreas em que as coisas ainda não estão no ponto que têm que estar e uma delas é, precisamente, a comunicação: explicar às pessoas como o VAR funciona, por que é usada, quando é usada, porque usamos nuns casos e porque não a usamos noutros casos. Isso é crucial. Depois, falo também da comunicação no próprio estádio: quando uma “review” está a decorrer, será importante que o público saiba que se trata de uma decisão sobre um cartão vermelho, ou um golo, ou um penálti. Por isso, creio que a área do VAR que necessita de mais alterações e melhorias é mesmo a comunicação. Num plano mais vasto, toda a área da Educação. Toda a gente acha que sabe tanto de Futebol… O VAR não vai acabar com a controvérsia. É uma ilusão pensar que vai. Ainda recentemente o Euro-2020 mostrou-nos isso, com lances em que algumas pessoas garantiam que era penálti e outras que não era penálti. Não é o VAR que vai terminar completamente com isso, com esse tipo de discussões.

Acredita que a experiência como VAR pode ajudar os árbitros de campo a serem melhores, ao ver e auxiliar o trabalho dos colegas? É um processo de mútuo benefício?
Sim, acho que sim. Os árbitros são seres humanos. Quando um árbitro toma uma decisão polémica sobre uma grande penalidade ou um árbitro assistente assinala fora-de-jogo e esses lances provocam controvérsia, e porque estamos a falar de seres humanos, é possível que no decorrer do jogo eles se desconcentrem com a preocupação, mantenham a dúvida e o receio de terem tomado uma decisão errada. E independentemente de nós tentarmos ensiná-los a serem capazes de tomar uma decisão, fazerem-no em consciência e depois seguirem em frente, porque o jogo prossegue e já não dará para voltar atrás, por muito que insistamos nisso, essa dúvida fica-lhes na cabeça e pode perturbá-los. Com o VAR, se tomam uma decisão controversa e o VAR não lhes aparece a dizer ‘olha, temos que rever isto, acho que erraste aqui…’, se isso não acontece eles sabem que não cometeram um erro, o que lhes permite manter a concentração na fase seguinte do jogo. Por isso, não os torna preguiçosos, ao contrário do que algumas pessoas pensam. O que faz é que lhes retira parte das dúvidas e preocupações que, por vezes, podem comprometer a sua confiança e concentração no jogo após uma decisão importante. Eles sabem que as decisões mais relevantes que tomarem no jogo, aquelas que podem mesmo decidir uma partida, foi revista por uma “rede de segurança”. Acho que isso beneficia a sua confiança e beneficia, também, o jogo. Acho também que o VAR tem um grande impacto no comportamento dos jogadores. Certamente já repararam nisso: se há uma decisão controversa e o árbitro verifica com o VAR, toda a gente se acalma. Os jogadores tendem a aceitar a decisão do VAR como final, não continuam o jogo com a convicção de que foram tratados de forma injusta e, como resultado, toda a atmosfera do jogo se torna melhor. Isso ajuda o árbitro e acho que ajuda também a relação entre jogadores e árbitro.

Que papel deverão ter a pedagogia e o esclarecimento público? Adeptos mais conhecedores sobre o sistema passarão a estar mais disponíveis a compreendê-lo e aceitá-lo?
Temos que aceitar a ideia de que todos os adeptos tendem a ver o jogo favorecendo a sua equipa e tendem, por isso, a analisar os lances com essa visão. Ao mesmo tempo, temos esta dicotomia interessante no Futebol: amamos o debate, amamos falar de decisões controversas, do mesmo modo que adoramos falar de um grande golo, de uma grande jogada, de uma grande defesa. É muito irónico, mas a verdade é que muitas pessoas começaram por se opor ao VAR porque pensavam que ia acabar com a controvérsia em torno do jogo, que é algo sobre a qual gostam de discutir. Querem continuar a poder ir ao bar e discutir com os amigos, depois do jogo, se foi penálti ou não. Isso não aconteceu, claro que a controvérsia continua a existir, porque há sempre decisões subjetivas. Esse debate não se perdeu com o VAR. Mas também há pessoas que dispensam essa parte e preferem um Futebol mais claro, menos polémico. Por vezes, há melhores decisões que são tomadas, mesmo não sendo muito claro se são “corretas” ou “incorretas”. O VAR nunca conseguirá acabar completamente com a controvérsia.

Numa perspetiva europeia, o VAR é já, hoje em dia, um dado adquirido ou há ainda alguns países com dúvidas em relação à utilização deste sistema?
Há algumas pessoas em alguns países que não gostam do VAR. Acreditam que se os jogadores não têm ajuda tecnológica durante o jogo, também os árbitros não deveriam tê-la e que as pessoas devem aceitar que, à imagem dos jogadores, os árbitros também possam errar. Mas essa é uma parte pequena e a grande maioria das pessoas já aceita e compreende que os jogos passaram a ser mais justos com o VAR. Todos no Futebol querem justiça. Se há decisões dos árbitros que não são tomadas corretamente e com o VAR elas são corrigidas, devemos utilizar essa tecnologia. De tal modo que isso já começa a ser exigido. Num jogo de qualificação para o Euro, a Inglaterra teve um golo anulado de forma incorreta, não estava fora de jogo… Ora, as mesmas pessoas que no fim de semana anterior tinham dito na prova interna inglesa que o VAR não era bom estavam nesse dia a perguntar onde estava o VAR e porque é que não havia VAR nesse jogo de qualificação!! Portanto, fica claro que o VAR é fundamental para acrescentar justiça ao jogo.

Comparando o Mundial-2018 com o recente Euro-2020, parece claro que na Rússia os árbitros de campo optavam por ir mais vezes verificar no monitor TV as reviews, enquanto no Euro-2020 seguiam a indicação do VAR sem optar por parar tanto. É um caminho pensado para reduzir os tempos de paragem?
É sempre complicado olhar apenas para o número de paragens. Por exemplo, o vosso estudo mostra que há mais paragens em jogos com equipas do topo da tabela, comparando com jogos de equipas do fundo da tabela. Mas depois vemos que as equipas do topo da tabela tendem, naturalmente, a marcar mais golos, por isso a probabilidade de haver “checks” é maior. Por isso, o número de “checks”, por vezes, é condicionado por outros fatores. No Mundial-2018, a média de paragens na fase de grupos foi maior do que nos jogos a partir dos oitavos, porque nestes jogos tivemos os melhores entre os melhores árbitros em campo. Tendencialmente, quanto melhor for a qualidade dos árbitros de campo, menor será a necessidade de o VAR atuar. Por isso, e falando em termos gerais, diria que no Euro tivemos dos melhores árbitros do mundo, para mais com mais dois anos de prática de VAR, e com isso menor necessidade de intervenção do VAR, quando comparado com o Mundial-2018. No Euro-2020 vimos árbitros mais treinados a usar o VAR, não só pela experiência internacional que têm, mas também com o uso que têm, semanalmente, nas provas nacionais. A UEFA tem uma especial preocupação no foco de cingir o VAR às situações em que tem mesmo que ser usado e isso terá contribuído para essa diferença.

Está envolvido, há três anos e meio, como consultor da FPF, na implementação do VAR em Portugal. Que observações faz sobre o que se tem feito por cá?
Essencialmente, devo dizer que o VAR em Portugal tem sido cada vez mais eficaz, mais eficiente. O tempo tomado pelo VAR tem sido reduzido. Temos visto uma significativa redução nos “silent checks”, porque os VAR têm percebido cada vez melhor que só devem mesmo intervir se algo tiver sido feito clara e notoriamente mal. E com tudo isso temos vindo a assistir a um aumento consistente da percentagem de tempo, dentro do total em que o VAR intervém, a levar a mudanças corretas nas decisões. E tudo isto sugere que os VAR em Portugal estão cada vez mais aptos a saber quando devem intervir – e também em saber quando não o devem fazer. Isso tem tido um impacto positivo e temos vindo a trabalhar para reduzir o tempo dos “checks”.

Como possível conclusão de algo que ainda está a entrar na sua quinta época de implementação… podemos já afirmar que o VAR contribui claramente para reduzir erros e infrações que possam ter escapado ao escrutínio imediato no campo?
Sim, isso é indiscutível e as estatísticas demonstram-no. Um número muito relevante de golos incorretos não passa agora pelo crivo do VAR e sem ele passavam. Ou então o contrário: golos corretos que eram anulados e que o VAR valida. O mesmo com os penáltis. Não tenho agora esse número certo de cor, mas diria que haverá à volta de 250 grandes decisões que foram corrigidas pelo VAR e que, sem ele, permaneceriam incorretas. Ora, esse dado prova que o VAR está a contribuir para uma maior justiça nos jogos de futebol em Portugal. E isso é bom para toda a gente. Passou, com o VAR, a ser mais provável que os jogos sejam decididos pelos jogadores e é assim que deve ser.

Fonte: FPF.pt