“Hoje em dia, os árbitros aplicam de forma cega as leis do jogo” – Entrevista a Bruno Paixão

O trabalho de Bruno Paixão enquanto árbitro e VAR não reúne consenso, tal como acontece com qualquer um que tenha desempenhado essas funções. Terminada uma carreira de 33 anos ligada à arbitragem onde, entre provas nacionais e internacionais, perdeu a conta aos jogos que apitou, viveu uma vida em busca de tomar “a decisão que toda a gente espera que seja tomada”, sempre tendo em mente que “passar despercebido é estar a promover o futebol”.

Bola na Rede: Começou na arbitragem aos 15 anos. Teve 33 anos de carreira. Até aqui viveu uma vida dedicada à arbitragem?

Bruno Paixão: Sim, foram 33 anos sempre dedicado aos treinos, ao trabalho, a estudar as leis do jogo e a preparar os jogos.

Que impacto é que a escolha de uma carreira como árbitro tem no desenvolvimento da vida pessoal?

Tem bastante impacto. Apesar de ter uma licenciatura em Engenharia e Gestão Industrial, o meu foco foi sempre a arbitragem e o futebol e, com isso, a minha vida pessoal ficou bastante afetada. Dedicava-me à arbitragem o dia todo, semana após semana, e isso foi afetando o lado pessoal. Foram opções que foram feitas. Sabia dos riscos. Por outro lado, foram opções que trouxeram os seus frutos.

A convivência com as pessoas e a deslocação a espaços públicos devem ser afetadas…

Isso é a gestão do dia a dia. Quando os árbitros chegam ao topo têm que se adaptar e saber viver com isso. Punha sempre a comunicação social e a crítica de lado.

É possível transmitir às pessoas que o erro pode acontecer de forma descomprometida?

Nunca vi as situações que se dizem de erro como erro. Vi-as sempre como oportunidades de melhoria. Nunca olhava como erro, porque aí é estarmos numa situação em que andamos na maionese e não saímos de dentro dela. Tentava descobrir os aspetos que corriam menos bem e que contribuíram para aquela decisão e corrigi-los para que não voltassem a acontecer.

A sensação que um árbitro tem ao acertar numa decisão difícil é a mesma que um jogador tem quando marca um golo?

Estamos a falar de emoções completamente diferentes. A emoção do árbitro é neutra. A posteriori, quando vemos o jogo e sabemos que a decisão foi acertada e que o trabalho geral foi positivo, ficamos com a sensação de dever cumprido e satisfeitos, porque contribuímos de forma positiva para um bom espetáculo de futebol. Nunca vivemos de forma emotiva a decisão como um jogador ou uma equipa quando marca um golo.

Há alguma situação em que o árbitro saia de uma partida com a sensação de “fiz um bom jogo”?

No futebol atual e mediático como o nosso, não. Há sempre aquela expectativa de vermos as imagens. Só depois de analisarmos as decisões mais críticas e o jogo em geral é que percebemos se foi um bom desempenho ou não. Até lá, estamos sempre na dúvida.

Em que materiais se baseia a preparação de um árbitro para um jogo?

Muitos vídeos e muitos dados estatísticos.

Os árbitros passam informação uns aos outros?

Ao nível da Primeira Divisão, isso acontece. Os lances são analisados por todos os árbitros e as situações vão sendo identificadas semana a semana. Isso funciona de forma natural na Primeira Divisão e já um bocado na Segunda Liga, porque os jogos dão quase todos na televisão.

Apesar de ser o árbitro principal o líder da equipa de arbitragem, lidava bem com o facto de ter que delegar funções aos restantes companheiros?

Sempre fiz questão de exercer uma liderança partilhada. Sempre quis ter árbitros assistentes que também fossem líderes. Isso contribuiu para que cada um desse o melhor de si em prol dos três (o quarto árbitro estava sempre a mudar).

Receber as insígnias da FIFA em 2004 foi o auge da sua carreira?

O auge da minha carreira foi o todo. A exigência foi tão alta que manter-me aqueles anos todos foi o meu prémio.

Perdeu as insígnias da FIFA em 2012 por uma situação que se veio, nove anos depois, a confirmar irregular. Com que sentimentos é que sai desse período?

É um misto de emoções tristes e alegres. Perder as insígnias aos 38 anos, quando tinha mais sete pela frente, e no escalão em que estava ao nível da UEFA, ficou muito por fazer. Há um documentário do Maradona em que ele diz, a dada altura, no âmbito da cocaína, que se tinha sido o jogador que foi a consumir cocaína, imagine-se o que é que seria se não a consumisse. Eu diria o mesmo. Se atingi o escalão que atingi na UEFA, o que é que aconteceria se me deixassem lá estar até ao fim da minha carreira? Teria atingido outros objetivos, porque o caminho estava a ser percorrido. A minha saída internacional não foi por questões da UEFA, porque lá estava a correr muito bem, foi mesmo por questões internas.

Teve alguma situação em que tivesse que aplicar uma regra daquelas que foge mais ao senso comum?

Sim. Há tempos, cruzei-me com o Marco Tábuas, que foi guarda-redes no Vitória FC, e ele lembrou-me que, na altura em que surgiu a regra de que o guarda-redes só podia ter a bola na mão durante seis segundos, fui dos primeiros árbitros a aplicá-la. A partir desse lance, ele sofreu o primeiro golo naquele jogo. Na altura, ele ficou chateado e ainda hoje diz que eu fui o único árbitro que aplicou aquela regra.

Acusavam-no de aplicar, com muita rigidez, as regras. Vê-se dessa forma?

Acho que é uma falsa questão. Na minha chegada à Primeira Divisão, com 23 anos, isso até pode ter sido verdade. Com 23 anos, apanhei muitos jogadores acima dos 30, muito experientes, jogadores com a ‘ratice’ toda. Aí fui rigoroso e meti o livro debaixo do braço por uma questão de evoluir enquanto árbitro e de marcar a minha posição. Numa fase inicial da minha carreira, posso ter sido um bocado rigoroso a nível disciplinar. Com o marcar da minha posição, porque os jogadores depois foram-me conhecendo, isso passou a ser uma falsa questão, mas que me acompanhou até ao fim da carreira. Nos primeiros cinco/seis primeiros anos de Primeira Divisão, mostrava muitos cartões por jogo e esse número médio foi baixando até final da carreira. Tinha uma premissa: um jogo bem-sucedido a nível disciplinar não podia ter mais de cinco amarelos. Pontualmente, havia jogos que tinham mais do que cinco, porque eram jogos mais exigentes, em que estavam mais coisas em jogo, pelo que os jogadores se entregavam mais emocionalmente ao jogo e havia lances mais disputados, e aí tinha que mostrar. O rigor que aplicava nos jogos foi baixando com o ganhar de experiência enquanto árbitro.

Atualmente, existe uma falta de associativismo entre os árbitros, nomeadamente naquilo que é a defesa do colega?

Na minha geração de internacionais, éramos bastante unidos e trabalhávamos para um bem comum. Quando nos juntávamos para melhorar as nossas condições, conseguíamos sempre, porque trabalhávamos para o todo. Isso, com esta geração de árbitros, perdeu-se por completo. Perdeu-se o sentido de equipa e do bem comum. À imagem da nossa sociedade, está muito focada no interesse do próprio e era importante mudar isso.

Há competência nas novas gerações de árbitros?

Há potencial. Se vai, a médio ou longo prazo, haver competência? Não sei. Tenho observado alguns árbitros que têm estado a aparecer nas camadas inferiores. Vejo alguma qualidade. Há falta de maturidade enquanto pessoa. Há outra lacuna também dos jovens árbitros, que é perceberem muito das leis do jogo, mas perceberem pouco de futebol. Para ser um bom árbitro, é preciso saber as leis do jogo e aplicá-las, mas também perceber de futebol, saber ler o jogo, saber o que é que o jogo pede. Hoje em dia, os árbitros aplicam de forma cega as leis do jogo. As lacunas da nova geração são essas mesmo: maturidade e perceber de futebol.

Isso permite que um árbitro adapte o seu critério ao que se está a passar no jogo?

Exatamente. Temos árbitros experientes na Primeira Divisão que o fazem bem, mas depois temos outros que têm essa lacuna e tomam decisões que não fazem sentido para aquele jogo. O árbitro deve tomar a decisão que toda a gente espera que seja tomada de acordo com as leis do jogo. Às vezes, isso não acontece, porque o próprio árbitro não está a perceber o que se está a passar.

Os árbitros também têm um papel na promoção do espetáculo?

Saber aplicar as leis do jogo, tomar a melhor decisão a cada momento e passar despercebido é estar a promover o futebol. Se o árbitro conseguir fazer isso com êxito, está a dar lugar às figuras mais importantes do futebol, os jogadores.

A arbitragem portuguesa tem alguns vícios que comprometem a promoção do espetáculo?

Os árbitros têm que se soltar da vertente classificativa. São seres humanos e é a carreira deles que está em causa, mas isso desvia-se da essência da arbitragem. Quando um árbitro está bem ao nível de relatórios e classificações, as coisas fluem de uma forma natural. A engrenagem começa a ficar perra quando surgem as primeiras notas negativas, e isso começa a afetar os desempenhos dos árbitros. Aí, a coisa começa a correr menos bem. Os árbitros soltarem-se da pressão classificativa ia contribuir para uma arbitragem melhor.

Das situações problemáticas que foram ocorrendo ao longo da sua carreira, houve alguma em que se tivesse sentido particularmente ameaçado?

Tentei viver esses períodos de forma descontraída, alheando-me do fenómeno mediático e fazendo a minha vida normal. Acho que consegui, porque, apesar dos momentos menos bons que passei, fiz sempre a minha vida normal. Não me fechei em casa, não me escondi, não fui para o estrangeiro, como foi noticiado uma vez. No sítio onde moro, as pessoas respeitaram-me sempre, não me criaram nenhum problema ou dificuldade. Inclusivamente, ia para Lisboa trabalhar de transportes públicos e nunca tive nenhum problema.

Existe a necessidade de se padronizar a interpretação dos árbitros?

Há aquelas zonas cinzentas em que qualquer decisão do árbitro está correta. Essas decisões são de livre-arbítrio. Em situações concretas de branco ou preto, tem que haver um critério uniforme entre todos os árbitros. Essa é a grande luta do Conselho de Arbitragem ao longo das épocas.

Essas decisões que estão em zona cinzenta não deviam ser uniformes ao longo de uma mesma competição?

É difícil, porque são mesmo cinzentas. Não há uma decisão certa. Qualquer decisão tomada pela equipa de arbitragem está correta. Sei que é difícil para os adeptos entenderem isto, mas é mesmo assim. É difícil haver um critério para esse tipo de lances.

Isso acaba por ser o reconhecimento de que o árbitro também é fator num jogo.

Sim, a equipa de arbitragem é um fator determinante no jogo.

Apoia que os árbitros falem no final dos jogos. Quais são os melhores moldes para isso acontecer?

Não sei quando, mas vai acontecer. É preciso darem ferramentas aos árbitros para o poderem fazer com qualidade. Os árbitros têm que estar preparados para enfrentar uma flash interview ou uma conferência de imprensa. Isso requer formação que os árbitros vão ter que obter. Vai ter que ser a Federação Portuguesa de Futebol a tratar dessa matéria. Não concordo muito com a flash interview, porque ainda está tudo muito a quente, mas conferência de imprensa, passado uma hora, para o árbitro poder ver os lances e receber alguma indicação por parte do diretor de comunicação e aí poder falar.

Enquanto esteve no ativo, se lhe pedissem para fazer isso sentia-se preparado?

Não, porque nunca tive essa formação. É uma lacuna. Nunca me senti preparado para o fazer.

Que balanço faz da aplicação do VAR?

Está num processo de evolução. De ano para ano, as coisas têm estado a melhorar. Vai haver sempre decisões discutíveis e mediáticas. A tendência é ir melhorando de época para época.

Alterava alguma coisa no protocolo?

Isso vai acabar por acontecer. Neste momento, só estão quatro situações previstas. Dentro dessas quatro situações previstas, vão abrir o leque do critério. Não me admiro nada que introduzam mais qualquer coisa pelo meio neste processo evolutivo do VAR. Estou-me a lembrar, por exemplo, de um pontapé de canto que foi marcado de forma errada e era pontapé de baliza. Pode passar por aí, porque de um pontapé de canto pode surgir um golo.

Tem a experiência de ter sido VAR. As emoções que se estão a viver no relvado passam para a sala onde se analisam os lances?

Os quatro árbitros no relvado estão a comunicar entre eles. Pelas imagens, dá para perceber o estado emocional do árbitro e o que o árbitro viu em determinado momento ou lance. O VAR vive aquilo que o árbitro está a viver.

Os espetadores deveriam ter acesso às comunicações do árbitro?

Estamos a lidar com emoções. No calor da decisão e envolvência do jogo, o árbitro também é um ser humano e tem reações emotivas. Naturalmente, dizem-se coisas que não se deviam dizer. Por esse lado, defendo que não.

Recentemente, o presidente do FC Porto teve declarações em que dizia que, felizmente, o Bruno Paixão já tinha deixado a arbitragem. Justifica-se que um dirigente desportivo teça comentários sobre uma pessoa que já deixou a atividade?

Os comentários são de Jorge Nuno Pinto da Costa. Na parte final da minha carreira, apitei um jogo do FC Porto em que o Senhor Presidente me disse algumas palavras positivas muito sentidas da parte dele. Lembro-me dessas palavras, foram palavras de respeito e até de alguma admiração pelo árbitro Bruno Paixão. Como tal, eu queria ficar com essa recordação de Jorge Nuno Pinto da Costa e respeitá-lo como presidente do clube que é. Não queria comentar essas frases que ele proferiu. A única coisa que posso falar relativamente a isso é que guardo com admiração as últimas palavras que ele me disse no último jogo que apitei no Estádio do Dragão.

Alguma vez tentaram influenciar, de forma direta ou através de ofertas ou outro meio indireto, as suas arbitragens?

Não, nunca me aconteceu.

Fonte: Bola na Rede