Foram esta semana divulgados alguns dados relativos à utilização da vídeotecnologia no primeiro terço da época 2020/21.
São números interessantes, que merecem análise atenta e que reforçam a importância que a ferramenta tem na melhoria do jogo e no apuramento da verdade desportiva.
Parece-me por isso que esta é a altura certa para recordar o caro leitor sobre as premissas-base em que assenta atualmente o protocolo. Para começar, não esqueçamos que o VAR só pode intervir em quatro situações de jogo (claras e inequívocas), que sejam mal decididas em campo:
– Validação de golos (todos os golos são confirmados pelo VAR antes do jogo recomeçar), infrações passíveis de pontapé de penálti (por assinalar ou mal assinaladas), expulsões com vermelho direto (essas e apenas essas) e troca de identidade disciplinar de jogadores (engano na amostragem de cartões ao infrator).
Em todos os outros momentos de jogo, mesmo determinantes na partida, o videoárbitro nada pode fazer. Por exemplo, lances passíveis de advertência ou de segunda advertência (por efetuar ou mal efectuadas), pontapés-livres mal assinalados ou por assinalar em zonas de perigo, foras de jogo não punidos que resultem em faltas perto da área ou em pontapés de canto e qualquer recomeço de jogo que seja mal efectuado (à exceção do pontapé de penálti), estão totalmente fora do seu escrutínio.
É como é.
A prenda milionária que o futebol deu à arbitragem (e que a FPF atempadamente ofereceu aos árbitros portugueses) é valiosa mas, por esta altura, ainda está longe de atingir a sua rentabilidade máxima.
É como se déssemos um Lamborghini Aventator S a um condutor, mas depois o obrigássemos a circular a menos de 60kms/H. A sensação só pode se de frustração, sabendo o potencial inegável que o bólide tem para chegar com mais qualidade, segurança e rapidez à meta.
Tudo dito sobre a máquina. Falta falar do condutor, porque é aí que mora parte significativa do problema.
Percebam que os árbitros passaram toda a sua carreira a decidir dentro do terreno de jogo, rodeados de variáveis às quais se foram adaptando: condições climáticas adversas, pressão humana (de proximidade, exercida por jogadores, elementos técnicos, adeptos), análise técnica baseada nos sentidos, fadiga crescente, gestão de emoções diversas, ângulos de visão diferenciados, enfim… um sem número de condicionantes às quais se habituaram ao longo dos tempos.
De um momento para outro (e foi literalmente de um momento para outro), passaram a ter que tomar decisões relevantes em condições totalmente distintas: foram colocados numa sala fechada, rodeada de monitores, sem gente à volta, sem cansaço, sem ruído e tendo que analisar lances não com base em tudo o que sempre treinaram e intuiram, mas microscopicamente, observando frames, repetições e imagens até à exaustão. Mudaram as circunstâncias mas a pressão para acertar é a mesma (ou maior).
Está fácil de ver por esta altura que houve quem se adaptasse melhor e quem se adaptasse pior. Com o passar do tempo – e já passou algum -, parece mais ou menos claro que uns têm mais jeito do que outros, que uns são mais qualificados do que outros.
É como é e, neste caso, é assim.
É precisamente aí, na construção de um quadro de elite competente (e apenas) dedicado à videoarbitragem, que reside um dos grandes desafios do Conselho de Arbitragem no que diz respeito ao seu quadro profissional.
O futebol de primeira linha já não é apenas um jogo criado para entreter o povo. Hoje é uma das mais poderosas indústrias do planeta, que movimenta biliões de euros por ano e que emprega, enriquece e desgraça muita, mas mesmo muita gente. Um mero penálti pode significar o fim de uma carreira, a despromoção de um equipa ou rescisões contratuais em catadupa. Um mero penálti pode significar um título, uma ida às competiçoes europeias ou uma descida vertiginosa ao inferno.
É fundamental que, dentro das condições de excelência que agora existem, as decisões mais relevantes de um jogo sejam tomadas por quem tem mais vocação, com rigor, concentração e responsabilidade.
O Conselho de Arbitragem da FPF está a fazer um investimento enorme na educação do seu quadro principal, dando-lhe mais e mais tempo de treino e formação específica: desde Agosto, já foram ministradas 133 horas de trabalho específico, de um total estimado de 610H (toda a época).
Os árbitros contam também com um “Simulador VAR”, onde treinam com frequência o processo de decisão em sala (offlline), naquela que é a aproximação mais real à que existe da decisão em competição.
Têm mais clips (vídeos) para analisar e terão, em breve, o aconselhamento presencial daquele que é considerado o pai da vídeotecnologia (David Ellerby, Diretor Técnico do IFAB).
Este é o momento certo para começar a filtrar pela qualidade e só pela qualidade.
Quando o Lamborghini passar a ser conduzido por Hamilton’s, ninguém o pára. É certo e garantido.