Autor

Duarte Gomes

Data: 25/02/2021

O exemplo inglês

Na década de oitenta, as tragédias de Heysel Park primeiro e de Hillsborough depois, atiraram a credibilidade do futebol inglês para a sarjeta.

Perante um cenário horrendo, com dezenas de mortes e centenas de feridos, a UEFA baniu (por prazo dilatado) todas as equipas inglesas de participarem nas suas competições.

Aproveitando uma questionável estratégia política, a Sra Thatcher pediu a Lord Taylor que propusesse um conjunto de medidas capazes de erradicar o fenómeno da violência nos estádios de futebol.

As suas conclusões originam aquilo que ainda hoje se conhece como o “Relatório Taylor”.

De entre mais de quarenta ideias apresentadas, (umas menos outras mais exequíveis), saíram as bases daquela que foi a maior mudança de paradigma do futebol em Inglaterra. Governo e futebol juntaram-se e decidiram falar a uma só voz, colocando mãos à obra… e aos bolsos.

Convencidos que aquele não seria nunca um gasto exorbitante mas apenas um investimento inevitável, mexeram em tudo. Tudo mesmo.

Nos estádios, todos os lugares passaram a ser sentados. Acabaram os “peões”, fossos e gradeamentos. Foi proibida a venda de álcool, melhorados todos os acessos e facilitadas as saídas (devidamente sinalizadas). Introduziram a figura do “steward” (pessoal bem preparado para a função), e recorreram menos às autoridades policiais, cuja presença em campo era mais vezes foco de repressão do que de prevenção.

Passou a haver revista exaustiva de cada homem, mulher ou criança que entrasse num estádio e iniciou-se algo absolutamente inédito à época, que foi a vídeo-monitorização de todos os adeptos.

É certo que houve danos colaterais associados como o preço dos bilhetes (que dispararam) e a capacidade dos estádios (que diminuiu significativamente), mas esses senãos foram aceites como consequência menor de um bem maior.

Criou-se a Premier League e com ela, profissionalizou-se um jogo que tinha, até então, demasiados tiques de amador. As ações de sensibilização aumentaram fortemente e as campanhas para se adotar comportamentos desportivos – o famoso “fairplay” – dispararam. Maciçamente.

Aos poucos, os clubes foram percebendo que, todos juntos, valiam muito mais do que individualmente. Curiosamente, foram os chamados “grandes” os primeiros a encaixar essa ideia.

O profissionalismo trouxe acréscimo de qualidade, o que seduziu um número crescente de patrocinadores. Jogadores dos quatro cantos do globo sentiram-se atraídos para jogar naquela nova liga, tal como os operadores televisivos, que competiram duramente pelos direitos de transmissão da competição.

Em poucos anos, o futebol inglês passou de banido e pré-falido para grande referência mundial.

Ciente da evolução, as legislações desportivas e criminais adaptaram-se e passaram a punir, de forma exemplar, quem fosse acusado de condutas ilícitas: os regulamentos tornaram-se implacáveis com agentes desportivos e clubes que ultrapassassem limites e a lei passou a perseguir o hooliganismo.

Muitos “adeptos” foram banidos e outros passaram a ter que se apresentar na esquadra da sua zona de residência à hora que a sua equipa jogava. Outros foram obrigados a entregar o passaporte 5 dias antes do seu clube jogar no estrangeiro. Quem falhasse, era preso. Foi assim desde então e hoje ainda é mais assim.

As câmaras que existem no interior dos estádios permitem identificar potenciais arruaceiros e esses deixam de poder entrar em recintos desportivos. Lá dentro e antes de cada jogo, inspeciona-se tudo, de forma exaustiva. Cadeira a cadeira, bancada a bancada. Não há nada que possa ser lá deixado antes do apito inicial.

À porta, fica tudo o que é considerado perigoso. Não entram tochas, petardos nem qualquer outro artifício pirotécnico. Não entram garrafas, isqueiros, nem bolas de golfe dissumuladas nas zonas genitais de rapazes… e raparigas. Há testes de alcoolemia sempre que se justifique e selecão criteriosa dos locais onde são distribuídos adeptos de uma e de outra equipas.

Há um agente de autoridade afeto a cada clube, responsável por identificar adeptos potencialmente perigosos e atuar sobre eles.

Nos estádios da Premier League, não há vedações. Muitos dos adeptos, que esgotam as bancadas, sentam-se junto aos bancos técnicos (literalmente colados a eles), onde estão ativos que valem milhões e milhões de libras. Nunca aconteceu nada. Outros estão apenas a um, dois metros do relvado, mas não entram lá para dentro. Nunca entram. Nem atiram objetos. Nem se portam mal. Nem ameaçam jogadores. Nem perturbam o árbitro assistente. Nem se batem. Está fácil de perceber porquê.

De facto, está tudo inventado.

A união perfeita entre medidas preventivas (com fortes campanhas de sensibilização) e punitivas (com a criação de um enquadramento regulamentar e legal rigorosos) é a única receita capaz de levar a bom porto o futebol em qualquer lado do mundo. Em Portugal também.

Se houver compromisso, envolvimento e trabalho de equipa, haverá resultados.
Lembrei-me disto, agora que estamos sem adeptos nos estádios. Seria tão bom começarmos a antecipar cenários e elevarmos o nível qualitativo para patamares que o espectáculo bem merece.

Fonte: SIC Notícias