Autor

Duarte Gomes

Data: 24/09/2020

Ainda hoje me falam do penálti do Jardel (c/ vídeo)

No dia 15 de dezembro de 2001, então com 28 anos, dirigi o primeiro grande derby da minha carreira.

O jogo, o último disputado no antigo Estádio da Luz, opôs SL Benfica a Sporting CP. Estávamos na reta final da primeiraa volta e num contexto competitivo efervescente.

O resultado foi um empate a dois, mas a partida não fez história nem pelos golos marcados nem pelo número de cartões exibidos.

Ela será sempre recordada por causa de uma única decisão. Uma decisão importante e errada:

– Jardel, então avançado do Sporting, simulou sofrer carga nas costas, jogou-se para a relva, gritou e o árbitro, muito verdinho e inexperiente, foi enganado. Caiu que nem um patinho.

O lance, na área encarnada, valeu (mal) um pontapé de penálti, que o próprio transformou em golo, reduzindo a desvantagem no marcador.

O LANCE PERDURA COMO UM DOS MAIS HORRÍVEIS DE SEMPRE

Até hoje, quase 19 anos e muitos milhares de jogos depois, o lance perdura na memória de muitos adeptos como um dos mais horríveis de sempre.

Eu vou repetir, para o caso de não terem lido bem: estamos a falar de um único momento de jogo (um pontapé de penálti), num jogo disputado em dezembro, há quase duas décadas e que terminou empatado.

Este tema – o da memória seletiva do adepto – é interessante e podia motivar aqui uma dissertação profunda sob o ponto de vista desportivo, sociológico, psicológico e até emocional. No entanto, não sou especialista na matéria e, confesso, estou demasiado próximo daquele instantâneo para poder emitir uma opinião justa e neutra.

O objetivo – que também não é, garanto-vos, o de fazer uma espécie de mea culpa tardio (isso seria tremendamente injusto para com todos os outros clubes, contra os quais cometi erros idênticos ou piores) – é apenas o de apelar a uma reflexão: à reflexão sobre o impacto emocional que a “clubite” tem no racional do adepto.

E porque é que eu falo disto?

Porque, nesse mesmo jogo, o “Duarte Gomes Árbitro” assinalou, também mal, um pontapé de penálti favorável aos encarnados (no caso por alegado corte na bola, com o braço, de Beto), num lance que, curiosamente, nunca ninguém falou. Nunca ninguém recordou.

E também nesse jogo é muito provável que tenha ficado por assinalar outro castigo máximo, numa ação muito (mas mesmo muito) suspeita de Argel na sua área.

Sobre esses dois momentos (e outros)… silêncio total. Desde então até hoje.

Para que conste, sei que não há maldade nisso. Nessa coisa de apagar da memória umas quantas verdades, apenas para manter vivas outras. As que convêm. As que dão mais conforto ao coração, às que amparam a revolta e a indignação.

É, diria, um ato reflexo. Algo quase afetivo.

ACONTECEU ALI, NO VELHINHO ESTÁDIO DA LUZ, COMO JÁ TINHA ACONTECIDO ANTES

É importante que se diga que essa tendência, aqui refletida num exemplo pessoal (e não faria sentido que fosse noutro), é transversal no tempo, nas pessoas e nas circunstâncias. Aconteceu ali, no velhinho Estádio da Luz, como já tinha acontecido antes e como aconteceu depois. É, foi e será assim com todos os árbitros, em muitos jogos, de várias equipas e com diferentes adeptos.

É um padrão de atuação, uma espécie de formatação cultural que existe desde a bola rola de forma organizada (séc. XIX), mas que é mais prevalecente em países como o nosso, onde a paixão é mais forte, empolada e, convenhamos, potenciada.

É pena que assim seja.

O mediatismo de uns abafa quase sempre a voz de outros, dando a ideia que esse tipo de erros só acontecem nos jogos dos chamados grandes. Como se houvesse uma cabala montada para destruir uns e levar outros ao colo.

Mais: os erros que pontualmente beneficiam alguns são sempre negligenciados e desvalorizados, como se fossem uma espécie de compensação por danos causados. Como se fossem juros a pagar de dívidas anteriores.

Pior: os erros de todos os outros intervenientes (treinadores, jogadores, guarda-redes) continuam a merecer outra tolerância e compreensão (e bem!), como se eles fossem de uma raça normal… e os árbitros não.

Vendo as coisas com a devida distância, não faz sentido, pois não?

É dia 23 de Setembro de 2020. Acabei a carreira há 5 anos e tenho 47 de idade. Dirigi cerca de dois mil jogos regionais, nacionais e internacionais, de clubes e seleções, em muitas competições.

E ainda hoje me falam do penálti do Jardel.

É como é.

Recorde o lance:

Fonte: SIC Notícias