A liberdade de expressão é um direito constitucional inabalável. É um dos pilares de um Estado de Direito democrático. No entanto, está limitada a outra premissa importante: a da não colisão com outros direitos constitucionais relevantes.
Vejamos um exemplo: eu, cidadão livre, posso dizer o que penso sobre determinada pessoa desde que não ofenda o seu bom nome, reputação e imagem. Como se diz na gíria: “A tua liberdade de expressão termina quando afeta a minha”.
Faz sentido.
Ora no futebol, essa linha – a que separa essa liberdade da violação dos direitos de terceiros – é muito ténue.
Entre vários exemplos, os que particularmente mais me incomodam são os que atingem sistematicamente a arbitragem e os árbitros. Para que fique claro, sou totalmente a favor da crítica enquanto forma de exprimir uma opinião e enquanto ferramenta de aprendizagem.
Nenhum árbitro está acima da crítica.
Nenhum árbitro pode sentir-se “ofendido” se alguém o chamar de incompetente. Se alguém lhe disser que ele é mau naquilo que faz. Se alguém afirmar publicamente que ele não tem a mínima vocação para a função.
Por muito que doa, nesses moldes essa é e será sempre uma opinião técnica, relativa à sua capacidade profissional. Concordem ou não, têm que aceitar, devem respeitar.
Outra coisa, bem diferente, é a crítica que ofende. A que faz insinuações graves e que belisca a honra, a imagem e a integridade de um agente da arbitragem. Essa sim, é inaceitável aqui e em qualquer lugar do mundo.
É na falta de limites a esse ataque que mora, quanto a mim, um dos maiores problemas do futebol português. Há décadas que assistimos a declarações públicas de responsáveis desportivos que mais não são do que verdadeiros assassinatos de caráter. Um incentivo gratuito à desconfiança, à suspeição e à violência. E isso é grave. Muito grave.
É certo que algumas dessas palavras são proferidas num contexto de excessivas emoções, com nervos à flor da pele e impulsos mal controlados. Não sendo desculpáveis, são, em certa medida, compreensíveis. Há pessoas boas que, no momento errado, dizem coisas más. Acontece.
Mas se essas devem merecer sanção disciplinar mais tolerante (embora agravada a cada reincidência), já as que são proferidas à posteriori, de cabeça fria e depois de sanada qualquer efervescência do jogo jogado, têm que ser punidas de forma absolutamente exemplar. Com rigor absoluto.
Infelizmente ainda não é isso que acontece por cá e todos sabemos disso. Por razões que desconhecemos e por outras que conhecemos bem – nomeadamente as que estão relacionadas com a forma como são propostos, redigidos e aprovados os regulamentos disciplinares no nosso futebol – o nível de castigos aplicado está muito aquém do esperado e desejado. Do merecido.
Convém não esquecermos que difamar alguém é algo bem superior a uma mera infração disciplinar. É crime e previsto no Código Penal Português. As repreensões escritas, multas ou dias de suspensão – as sanções menos gravosas dos atuais regulamentos – são, na sua forma atual, meros “nenúfares” numa plantação que devia ser de cactos.
É pouco. Muito pouco.
Não obstante o esforço recente das estruturas em apertar a malha a quem se excede, a verdade é que a pressão inaceitável, as palavras incendiárias e as declarações bombásticas continuam a surgir com frequência. Antes e depois dos jogos. De forma mais ou menos direta, com maior ou menor brutidão, com mais ou menos sarcasmo. Depende do ator, do momento e da estratégia de cada um, a curto ou médio prazo.
É, em bom português, lixo a céu aberto.
Ora, isso só acontece porque a punição é inócua. Funciona quase como uma espécie de convite à reincidência. Como um incentivo à ofensa. Não é essa a leitura bem intencionada de quem legisla, é essa a leitura de toda a gente cá fora. E o futebol não é só o que é. É também a perceção do que parece ser.
Aquilo que certos responsáveis conseguem dizer, de voz grave a dedo em riste, sobre árbitros/arbitragens, devia fazer corar de vergonha não apenas os próprios – que não têm vergonha nenhuma na cara -, mas sobretudo quem “permite” que o façam assim, quase impunemente, a troco de umas centenas de euros de coima ou de meia dúzia de dias a ter que ver a bola no camarote presidencial. Chato.
Quando as palavras de ordem são credibilizar e valorizar, quando não faltam campanhas a apoiar causas sociais e mensagens positivas ligadas ao desportivismo e às boas práticas… o que é que é preciso fazer para mudar toda esta forma nociva de comunicar e influenciar adeptos?
O que é preciso fazer para travar delitos de opinião, crimes lesa-reputação? Coragem?
Assertividade? Capacidade?
Quando eu era miúdo, à primeira errada que fizesse levava uma bronca tremenda… à segunda apanhava. Remédio santo. Nunca mais repetia.
Há momentos em que a única pedagogia possível é a punição.
Isto é tão, mas tão claro que o que custa mesmo a perceber é porque é que ainda não acontece onde devia acontecer.