Autor

Duarte Gomes

Data: 17/09/2020

O ódio ao dono do apito

“Ser árbitro (ou juiz ou júri) é, provavelmente, uma das tarefas mais desafiantes que existe na atualidade.”

Essa é uma verdade inquestionável e que vale para qualquer atividade desportiva: do futebol ao hóquei em patins, da ginástica ao atletismo, do ténis de mesa ao judo.

Há, em todas as modalidades, esse fio condutor. O do ódio ao dono do apito.

É como se o “modo ataque” estivesse ativado em permanência. É como se o árbitro já nascesse bandido e o povo fosse o seu único julgador.

Parece exagero, mas acreditem… não é.

Aos olhos da maioria dos adeptos, os árbitros não são meros agentes desportivos. Não são figuras necessárias para que as leis de jogo sejam aplicadas o melhor possível, dentro do possível. Não são pessoas normais, que têm filhos e pais e que apenas fazem algo que mais ninguém faz.

São ladrões. Uma cambada de ladrões mal-intencionados, que nasceram e foram criados para prejudicar “a nossa equipa, o nosso filho, a nossa prestação”.

A CRÍTICA DE SOFÁ E DE CAFÉ
Há, em quem está do lado fácil – o da crítica de sofá, o da censura de café – uma perceção exterior corrosiva sobre quem desempenha funções na arbitragem. E quanto maior, mais mediática e mais apaixonante for a modalidade, mais cruel e feroz será a crítica, a censura e a intimidação.

Em Portugal, como em tantos outros países do mundo, no futebol essa verdade tem outro peso. É mais verdadeira.

Dizem que essa caraterística – a que leva gente a espumar de raiva e a atirar pedras, moedas e isqueiros – é normal. Faz parte da nossa essência, da nossa latinidade. Da nossa forma de ser e estar.

Dizem que o português típico é assim, por natureza: demasiado emotivo, bastante efervescente e algo descontrolado.

Dizem que não é por mal. Que as pessoas têm que libertar a pressão, a raiva e a frustração.

Eu digo-vos que não é verdade. Eu também sou gente que sente e nunca precisei de ofender, agredir ou ameaçar alguém sistematicamente para expurgar demónios ou baixar a tensão arterial.

OS DOIS TIPOS DE PESSOAS
A verdade? A verdade é que há dois tipos de pessoas: as bem-formadas e respeitadoras… e as outras.

As primeiras não gostam de perder, mas aceitam a derrota com fairplay e classe. Não deixam de criticar, mas sabem fazê-lo no local certo, em modo próprio. Não deixam de se revoltar, mas agem com educação, nível e fundamento.

As outras não.

As outras usam o pretexto do “calor do momento” para despejar deselegância, mau perder e brejeirice.

As outras gritam porque querem. Ofendem porque precisam. Batem porque isso fa-las sentir melhores, mais fortes. Superiores.

É tudo uma questão de cultura desportiva ou, no caso, da falta dela.

O problema, que é grave e tem causado fortes transtornos desportivos/pessoais a quem escolhe esta função, tem solução a médio/longo prazo.

Essa passa por investir mais na prevenção, formação e educação das pessoas. De todas as pessoas.

O ÚNICO CAMINHO A SEGUIR
É preciso estar mais perto das equipas, dos dirigentes e dos adeptos. De todas as equipas, de todos os dirigentes. É preciso ir mais vezes às escolas, aos colégios e aos escalões de formação de clubes e coletividades. É preciso acionar contactos e articular estratégias com câmaras municipais, juntas de freguesia e agrupamentos escolares.

É preciso sensibilizar os pais para a importância do seu comportamento enquanto referência e exemplo para os seus filhos.

É preciso criar novas rotinas de conduta, assentes em mensagens construtivas, positivas e de puro desportivismo.

E é preciso ensinar as pessoas a relativizar.

O desporto é fundamental no desenvolvimento dos jovens e crucial para o bem-estar físico e emocional do adultos. É bom competir e é natural querer ganhar, mas é preciso aprender a fazê-lo de forma distinta. Mais nobre e elevada.

O desporto é uma variável importante nas nossas vidas, mas não é a mais importante de todas. Se havia quem duvidasse disso, o destino encarregou-se de o provar nos últimos tempos. Infelizmente.

É tudo uma questão de aprender para evoluir. Entender para mudar o chip. Há quem já o tenha conseguido, há quem esteja no caminho certo.

Este esforço – repito, difícil, paciente e demorado – não cabe só aos outros. Não cabe apenas às autoridades desportivas, aos dirigentes de clubes e ao governo.

Cabe a cada um de nós.

Cabe à imprensa, ao autarca, à professora e ao monitor. Cabe ao empresário, ao treinador, ao jogador e ao comentador. Cabe ao avô, à mãe, ao filho e à tia. Cabe a todos.

Esse é o caminho. O único caminho a seguir.

Pelo meio vamos apanhando as pedras. Um dia construimos o tal castelo.

“Impossible is nothing”.

Fonte: SIC Notícias