Conheço o Hugo há trinta anos. Conheci-o pela mão do seu pai, Moreira Miguel, também ele árbitro de futebol.
Na altura ele ainda não era árbitro (não teria idade para isso, penso eu) mas tirou o curso pouco depois. Tal como acontece com tantos meninos e meninas filhos de árbitros, o Hugo acabou por seguir as pisadas do seu pai.
Percebe-se. Um adolescente que jogou futebol e que passou a sua juventude a ver o progenitor a fazer e desfazer malas cheias de cartões e apitos, dificilmente escaparia ao mesmo destino.
Ainda bem que assim foi.
O Hugo fez o seu trajeto nos regionais, depois dos nacionais e chegou à 1ª Categoria em 2006, onde se mantém até hoje.
Para quem não fez as contas, eu digo: está há 15 épocas consecutivas ao mais alto nível, a arbitrar jogos de 1ª e 2ª Ligas, Taças, finais, clássicos e dérbis. Em 15 anos, o Hugo viu nascer e partir muito jogador, treinador e dirigente. E continua lá, com coragem, dedicação e resiliência, a fazer o melhor que pode e sabe.
Em 2013 foi promovido a internacional, estatuto que ainda hoje mantém, somando dezenas de jogos no estrangeiro.
Hoje o nome do Hugo anda na “boca do mundo” pelas razões habituais. As mesmas de sempre.
Para ele não é novo, tal como não foi para mim, para o Pedro, para o João, para o Lucílio, para o Paulo ou para o Olegário… e tal como não será para aqueles que, amanhã, forem o alvo direto das frustrações de uns e de outros. Sim, porque não são apenas alguns, são todos. São também aqueles que agora têm a distinta lata de apontar o dedo, como se todos nós não nos lembrássemos do número de vezes que já fizeram o mesmo ou pior.
Só almoça hipocrisia quem quer e hoje ando sem apetite.
No meio disto tudo, a sina dos árbitros é a mesma: se não és momentaneamente competente, prepara-te para ver a tua vida virada do avesso. Sem filtros, sem escrúpulos, sem pudor.
Essa linha, a que separa a crítica técnica do ataque furioso à integridade, já não existe há muito tempo. Esbateu-se. Banalizou-se e a verdade é que não parece haver muita gente preocupada em mudar isso.
Hoje o árbitro que tem um jogo mau para o lado errado, na hora errada, não é apenas incompetente. É ladrão, corrupto, vendido e tem as portas da sua vida pessoal abertas, à disposição de meia dúzia de acéfalos manietáveis, capazes de coagir, amedrontar e magoar.
E lá está – para além de meia dúzia de comunicados redondos a lamentar o sucedido – pouco mais se diz, pouco mais se faz. Pelo contrário. Espera-se que o tempo passe, que a tempestade acalme e que a areia se dissolva no ar, até que o bom tempo regresse.
Até que apareça a próxima nuvem cinzenta (e vai aparecer), os Hugos desta vida – e respetivas famílias – são baleados com rótulos, pedras, insultos, ameaças e ofensas a toda a hora. De manhã à noite. Em casa, no email, no telemóvel, na rua, no trabalho ou até na escola dos miúdos, porque é assim que as coisas se fazem por cá. Justiça à macho latino, perante a impunidade de tudo e todos.
Um destes dias, a coisa voltar a ficar feia e aí adivinhem? Sai novo comunicado a condenar, a lamentar e a exigir responsabilidades, sublinhado pelo discurso premonitório do “qualquer dia acontece uma desgraça”. É tão previsível que pode ficar feito já.
Que pena ver o que algumas pessoas podem fazer a um espetáculo tão grandioso.
Uma palavra final para os árbitros, que sofrem repetidamente na pele a desproporção épica de atuações infelizes em campo: deixem-se estar assim.
A comer e a calar em silêncio, sem uma palavra, cada um no seu cantinho, a fazer a malinha para o próximo jogo e a rezar a todos os santinhos para que não lhes toque a mesma sorte.
É esse o espírito e nisso são, de facto, muito unidos: vão a todas sem abrir a boca, porque hoje arbitrar já é uma profissão e não permite tomadas de posição conjuntas, murros na mesa ou gritos coletivos a dizer “chega!”.
Deus nos livre, isso é coisa dos malucos do passado.
Está tudo bem quando ninguém diz que está mal, portanto quem está errado sou eu. Até ao dia.