O ex-árbitro Duarte Gomes aborda os lances duvidosos da 2ª jornada da Liga portuguesa e explica o que se passou com Eric Dier, que saiu do relvado a meio de um jogo do Tottenham de José Mourinho.
Na última semana, uma série de jogos (em Portugal e não só) tiveram lances interessantes para análise. Lances que levantaram dúvidas, quer pela sua natureza subjetiva, quer pela dificuldade em perceber-se se a decisão tomada foi ou não a mais acertada.
Houve até espaço para uma situação mais caricata e até pouco vista no futebol moderno, mas sobre esse momento, protagonizado por Eric Dier (Tottenham), falarei adiante.
Por agora, a ideia passa mesmo por insistir numa mensagem importante, que convém pisar e repisar para que nunca a esqueçamos: nem todos os lances têm “carimbo”. Nem todos são indiscutíveis, claros e inequívocos. Nem todos são consensuais.
Há muitos que são cinzentos e subjetivos. Há muitos que são duvidosos para quem está cá fora e demoníacos para quem tem que decidir, lá dentro.
Há lances tão difíceis que deixam o árbitro cheio de dúvidas, o treinador cheio de raiva e o adepto cheio de descrença. E o pior é que, em relação a isso, não há muito a fazer.
A única alternativa é confiar nos conhecimentos técnicos, boa-fé e experiência de quem decide, porque quem decide tem saber técnico, boa-fé e experiência. Já decidiu muitos lances semelhantes, em vários cenários diferentes.
Um dos exemplos mais evidentes deste tipo de situações é o cliché da “bola/braço na mão”.
Ao longo dos anos, as leis bem têm tentado afunilar critérios e tipificar situações para que exista maior uniformização na hora de decidir, mas não é fácil. Não é mesmo fácil.
À exceção de meia dúzia de jogadas claras e inquestionáveis (daquelas que toda a gente vê e ninguém questiona), a maioria flutua naquela fronteira ténue que separa a ação legal da ilegal. O acerto do erro. É uma valente chatice para toda a gente.
Mas não se pense que este dilema, o da mão na bola, é o único capaz de enfurecer quem devora futebol.
Há muitos outros capazes de recriar idênticos sintomas. Por exemplo, a eterna dúvida sobre a intensidade de uma carga: quando é que ela é suficiente para ser punida como faltosa e quando é que é apenas um contacto aceitável?
Mas há mais: quando é que um toque de um jogador provoca noutro desequilíbrio/queda e quando é que essa foi apenas simulada, dramatizada, empolada? Quando é que um braço na cara acontece devido ao impulso natural para saltar à bola e quando é que é imprudente, negligente ou malicioso? Quando é que um jogador em fora de jogo interfere com a ação dos defesas contrários e quando é essa posição não tem impacto em nenhum deles? Quando é que um mero protesto deixa de ser uma contestação antidesportiva e passa a ser uma injúria, uma ofensa? Quando é que uma entrada mais dura tem que ser punida com cartão vermelho e não apenas com um cartão amarelo? Se não houver videoárbitro, quando é que uma rasteira cometida no limite da área, em jogada rapidíssima, deve ser punida com pontapé-livre ou com pontapé de penálti? Quantos minutos é que devem ser acrescentados como compensação justa, em cada período de jogo?
São demasiados “quandos”, não são?
Os “quandos” existem porque o futebol – que é um desporto que permite o contacto e que é disputado por jogadores com personalidades distintas – não é uma ciência exata.
Há neste jogo milhares e milhares de jogadas e movimentos distintos, acelerações e rotações, quedas e trambolhões, ataques e defesas, saltos e empurrões, enfim… há um sem número de momentos inesperados que são realmente difíceis de avaliar in loco. E o VAR só pode intervir em alguns.
Nos casos mais complicados e que só geram discussão (seja qual for a decisão), há uma pergunta inteligente que os árbitros fazem a si próprios, quase que em modo automático, que é a seguinte:
– Que tipo de decisão é que o futebol espera neste lance?
No fundo, o que é que as pessoas esperam ao ver esta jogada? Qual a resposta mais justa para este momento?
Para lá da letra da lei e da sua profunda sapiência teórica, mora algo mais determinante: a sensibilidade para o jogo. O bom senso. O saber ver para além do que é visível.
Em cada jogada duvidosa, há um enigma pronto a decifrar, uma resposta escondida: o olhar de culpado (ou inocente) de quem pretensamente faz a falta, a reação genuína (ou simulada) de quem sente a dor da pancada, a marca visível na perna, a reação espontânea dos colegas, o som da rasteira ou do pontapé, a forma de cair, as sensações que a velocidade e rispidez do momento transmitem, enfim, há um sem número de mensagens codificadas que o instinto certo sabe responder mesmo sem ver.
Quem tem faro, quem conhece o jogo, quem sabe de bola, quem tem feeling… acertará sempre muito mais do que falhará.
E repito… é preciso confiar. Cada um faz o que lhe compete, o melhor que sabe e pode.
PS – Eric Dier teve que ir à casa de banho durante o jogo do Tottenham contra o Chelsea. A lei permite-o, obviamente. Mal seria. A única condição é pedir autorização ao árbitro para sair e para reentrar. De certeza que o fez.