As últimas semanas têm sido de grande contestação em relacão às arbitragens da Premier League.
Não, não, esperem. Vou reformular.
As últimas semanas têm mostrado que há contestação sobre arbitragens em todo o lado, inclusive na Premier League.
Assim está melhor.
No caso concreto dos súbditos de Sua Majestade, a maré anda particularmente cinzenta. Algumas decisões dos árbitros fizeram estalar o verniz e a paciência de treinadores, comentadores e media ingleses. Na base da contestação mora uma mão cheia de (eventuais) erros em jogos de jornadas recentes.
Dois dos mais polémicos aconteceram no dérbi de Liverpool: aos 90+3′, e com o jogo empatado a dois, Henderson (dos reds) viu o seu golo anulado por alegado fora de jogo de Mané. A imagem – por vezes ilusória devido ao ângulo em que é captada e à escolha do frame que o realizador mostra em casa – parece indiciar que o senegalês não estaria adiantado.
Mas se esse lance deixou dúvidas, outro anterior configurou erro evidente de toda a equipa de arbitragem: Pickford, guarda-redes do Everton, protagonizou entrada muito feia sobre Virgil van Dijk, lesionando-o com gravidade.
O lance, punível com pontapé de penálti e expulsão, foi entretanto bem invalidado por fora de jogo. O problema é que o VAR não sabia (reconheceu-o mais tarde) que o facto de um lance ser tecnicamente “apagado” nem sempre obriga à anulação das sanções disciplinares dele decorrentes.
Na verdade, o protocolo é muito claro: todas as infrações disciplinares punidas com base em comportamentos pessoais ou entradas negligentes/grosseiras devem manter-se, sem prejuízo da “correção” da jogada que a originou.
Assim, uma advertência por despir a camisola, protestar, cometer falta negligente ou ser culpado de outro qualquer comportamento antidesportivo deve permanecer sempre. Da mesma forma, um vermelho exibido por conduta violenta, entrada grosseira ou linguagem/gestos injuriosos também não será anulado.
As únicas sanções eliminadas quando a jogada é invalidada são as que resultam das chamadas “faltas táticas”, ou seja, os amarelos exibidos por corte de ataque prometedor ou as expulsões que resultem da tentativa de evitar claras oportunidades de golo. Faz sentido: como os lances foram invalidados, as infrações tornaram-se irrelevantes.
Nesta situação, a única decisão acertada seria assinalar fora de jogo e exibir o vermelho direto a Pickford, mas nem VAR, nem AVAR, nem árbitro, nem 4′ Árbitro nem nenhum dos dois assistentes lembraram-se dessa premissa protocolar.
Se fosse por cá, não era o fim do mundo mas o mundo andaria perto do fim.
Noutro jogo, Aguero foi acusado de ser machista, abusador e prepotente, depois de tocar com a mão no ombro/pescoço de uma árbitra assistente (discordou da decisão). O comportamento do argentino foi, no mínimo, antidesportivo (e tinha que ser punido), mas reduzir a situação a uma questão de género é algo ofensivo para homens e, sobretudo, para mulheres.
Por cá, o assunto chegaria à Assembleia da República.
Esta maré de contestação não é recente para aqueles lados. Discussões desta natureza têm sido cada vez mais frequentes e, quase todas, assentam em dúvidas quanto à credibilidade da tecnologia e à competência/integridade de quem a opera.
Lá como cá, afinal… pouco muda.
Se é certo que os excessos são maiores em países latinos como o nosso (a latinidade tem umas costas muito largas), não deixa de ser verdade que o direito à crítica é inabalável e que o setor da arbitragem não pode deixar de a ouvir, filtrar e evoluir com aquela que é sensata e faz sentido.
Na maioria das vezes, a solução entre uma decisão contestada e ruído exterior que espoleta está à distância de uma palavra. De uma só explicação.
É algo inerente à natureza humana: as pessoas gostam de ouvir a versão de quem está dentro do assunto (não confundir versão com justificação).
Gostam de perceber as coisas quando as coisas têm consequências impactantes e têm que ser percebidas.
Gostam de entender o que levou à decisão, o que a motivou, que tipo de critério e raciocínio esteve subjacente a ela.
Quando isso acontecer, as coisas podem nem mudar significativamente, mas o sector saberá que fez a sua quota-parte: abriu o jogo quando o jogo tinha que ser aberto.
Poderá haver quem tente ridicularizar ou sabotar esse tipo de abordagem, mas ninguém sensato poderá dizer que foi o silêncio total a empolar a suspeição. Ninguém poderá voltar a afirmar que foi a falta de comunicação a ampliar a contestação.
Uma classe que esteve sempre carregada de fantasmas tem que entender que há momentos em que uma comunicação sincera, humilde e aberta resolve quase tudo. Não terá que ser sempre nem ao desbarato: apenas quando as circunstâncias e consequências o exigirem.