Nota do autor: O artigo que se segue não tem qualquer conotação político-partidária. Não pretende beliscar a idoneidade de quem quer que seja. Não tem ponta de sarcasmo ou ironia e também não é direcionado a ninguém em particular.
Não sei se os danos colaterais da pandemia justificam tudo, mas a verdade é que há muita coisa que não está bem e isso é visível.
Começando pelo vírus e pela mudança que impôs, há que ser justo num aspeto: não deve ser fácil a vida de quem dá a cara nesta fase. A quantidade de oportunistas que estão à espera de uma escorregadela é impressionante.
Esta gente anda a dar a cara há meses a fio. Nota-se neles cansaço, desgaste e exaustão.
O erro de pormenor, a palavra fora de contexto, o lapso momentâneo ou a resposta pontual distorcida são compreensíveis. Ninguém é de ferro, ninguém é sobre-humano, ninguém estava à espera de uma realidade tão prolongada no tempo.
Ser abutre ou eterno wannabe pode até ter a sua piada, mas entre os que criticam tudo o que os outros fazem e os que fazem tudo o que os outros criticam, vou sempre preferir os segundos.
Esta constatação, justíssima, não invalida a liberdade em pensar diferente. Não invalida o desacordo legítimo quanto a decisões estruturais, cujo impacto e consequências podem ir bem além dos causados por meros lapsus linguae.
Por exemplo, para mim não faz sentido a insistência em estádios vazios para depois vermos que espetáculos de stand up comedy e touradas estão cheios de gente. O argumento – o de que quem frequenta um e outro tem comportamento diferente – é quase ofensivo. Ninguém pede bancadas esgotadas nem adeptos colados uns aos outros a saltar, esbracejar, cuspir e gritar. O que se pretende é que o cumprimento das regras sanitárias se harmonize, coerentemente, com a vontade de reerguer uma indústria cujo peso é tremendo no PIB nacional.
Também não faz sentido que exista um controlo tão apertado em festas privadas de miúdos para depois “quase” impedi-los de treinar, de praticar e jogar a modalidade que escolheram há anos. A medida, seguramente bem intencionada, não é apenas injusta. É cruel e acarreterá consequências piores. A “cura” levará a comportamentos de risco bem maiores do que a “doença”.
Por outro lado, não faz sentido limitar ao máximo o aglomerado de pessoas em determinados locais para depois se permitir que alguns partidos organizem manifestações ou reentrés políticas com centenas e centenas de pessoas no mesmo espaço. Pode até ser legal, mas cheira a gozo. A gozo puro.
Também cheira a gozo o levantamento atento de restrições a quem quer retomar a sua atividade profissional para depois permitirem-se festivais políticos com dezenas de milhares de pessoas no mesmo espaço. Tudo legal, certo. Mas tão incoerente…
Mas há mais. Não faz sentido retringir o número de pessoas que podem ir a batizados, jantares, casamentos ou funerais, para depois permitir-se que muitas mais encham autocarros, metros, comboios e aviões dia após dia, semana após semana.
E, cá para nós, lamento ter que o dizer, não faz sentido ver meia dúzia de representantes do Estado a assistir a finais europeias no camarote VIP do estádio, enquanto as centenas de adeptos que viajaram orgulhosamente com as suas equipas estiveram impedidos de o fazer.
Tudo isto estará dentro da lei? Seguramente que sim, mas não deixa de ser feio. Numa fase em que se exigem sacrifícios a tantos, poucos não podem ser exceção.
Quem manda, quem decide, quem tem poder para definir estratégias é, neste momento de escuridão, a nossa luz. O nosso farol. A nossa grande referência.
Tem obrigação acrescida, assente em valores e boas práticas. Assente no exemplo. Não há decreto nenhum que tenha mais força do que isso.ex