O desporto quer o cartão branco, a “arma da paz”

Portugal inventou um cartão que premeia. É branco, a cor da paz, e pretende promover isso mesmo. Num prisma oposto ao dos cartões amarelo, vermelho ou azul, que servem como punições, chegou o cartão que valoriza atitudes elogiáveis, começando pelo respeito, passando pelo desportivismo e acabando na ética. Em suma, abrange tudo o que puder ser incluído num conceito vasto de “boas práticas”.

Mas nada disto é novo. Em rigor, já existe desde 2015. Em sete anos, o que mudou? Já tem tido efeitos positivos no desporto? Em que modalidades? Por que motivo ainda não existe na I Liga de futebol, palco onde mais se destacaria? Acima de tudo isto, por que motivo continua a ser algo desconhecido para tanta gente?

Em 2019, em declarações ao PÚBLICO, João Capela, ex-árbitro de futebol, previa alguns anos até o cartão branco estar enraizado no desporto, em geral, e no futebol, em particular. Mas havia algo que lhe dava esperança. “Vai demorar algum tempo para as pessoas se habituarem, mas os jovens jogadores, os pais e os árbitros que já estão a crescer com o cartão branco vão acabar por exigi-lo”, apontava.

Apenas um no CP
Sete anos depois da estreia e três anos após a premonição de Capela, o intento ainda não foi totalmente cumprido. No caso do futebol, o cartão branco já foi utilizado em provas nacionais seniores — um passo considerável depois de anos em que era visto como uma ferramenta limitada ao futebol distrital e, sobretudo, aos escalões de formação —, mas a curva de crescimento ainda não tem um perfil exponencial.
Nos dados pedidos pelo PÚBLICO ao Instituto Português da Juventude e do Desporto (IPDJ), o copo meio cheio diz já que foram exibidos 2783 cartões brancos até 2021, mas o meio vazio aponta que apenas sete foram no futebol sénior (um no Campeonato de Portugal, um na Liga Revelação, dois na II divisão feminina e três na III divisão feminina).
No caso do Campeonato de Portugal, a prova com mais visibilidade das quatro referidas, foi uma única situação. Em Janeiro de 2021, Gonçalo Teixeira, jogador do Esperança de Lagos, levou o árbitro setubalense Paulo Barradas a exibir-lhe um cartão branco. Na altura, o Lagos beneciou de um livre directo após um jogador do Olhanense ter agarrado a bola achando que o jogo já estava interrompido — e não estava. E Gonçalo Teixeira abdicou do livre como lance perigoso, chutando a bola pela linha de baliza. O árbitro Paulo Barradas justicou o cartão branco de forma simples: “Temos de valorizar estas situações. Foi um momento de credibilização do futebol”.

Apesar desta amostra ainda curta no futebol sénior, José Lima, coordenador do Plano Nacional de Ética no Desporto (PNED) do IPDJ, garante que a análise preliminar aos dados (ainda indisponíveis) da temporada 2021/22 é promissora.

João Tomás teria recebido
Neste sentido, a pergunta evidente é se o IPDJ nota efeitos positivos, sobretudo nos escalões de formação. E a resposta, apesar de carecer de mais estudos, é positiva: “Os únicos dados que comprovaram esta tese foram retirados de um estudo feito na Associação de Futebol de Lisboa, em escalões de formação, e posteriormente confirmados pelo investigador inglês Steve Town, onde ficou provado que aplicação dos cartões brancos levou a uma diminuição das ocorrências disciplinares”.

Os dados a que se refere o IPDJ são do escalão juniores “E” (futebol de sete), no qual em 2015/16, sem cartão branco, existiram 57 ocorrências disciplinares, mas em 2016/17 e 2017/2018, já com cartão branco, o valor desceu para apenas 18 em cada temporada.

O ex-árbitro Duarte Gomes, agora também embaixador do PNED, aponta ao PÚBLICO a mesma ideia. “Todas as provas que com o cartão branco instituído têm menor número de sanções disciplinares. Tem tido impacto directo nas equipas, porque conduz a que boas práticas se repitam e reduzam as más”. Em geral, o ex-árbitro crê que a ideia que “tem sido um enorme sucesso”. “A visão que tenho é positiva. Isto começou como projecto simbólico e mantém esse esse cariz de não punir, mas sim premiar. É um corte de paradigma”, elogia. E estima o cartão branco na I Liga a curto/médio prazo: “O futebol profissional move-se por outros valores, até financeiros, e tem alguma resistência. Mas tenho a sensação de que a curto/médio prazo será uma realidade nos escalões profissionais”.

Duarte Gomes diz mesmo que, enquanto foi árbitro, gostaria de ter tido o cartão branco no bolso. “Houve um jogo do Rio Ave, em Vila do Conde, em que jogava o João Tomás. Há um lance em que recebo informação do meu assistente em como não havia fora-de-jogo quando o João Tomás se ia isolar e eu, por uma questão de má comunicação, só ouvi a parte do “fora-de-jogo”. Sem olhar para o assistente (que não levantou a bandeira), apitei imediatamente e interrompi indevidamente uma jogada em que não havia fora-de-jogo”, contextualiza.
E detalha: “Fiquei desfeito, assumi o erro, fiz uma bola ao solo, expliquei a situação ao João e ele, que tinha tido tudo para fazer golo, teve um fair-play fantástico. Passou por mim, brincou comigo e disse algo como ‘deixa lá, acontece’. A forma como ele encaixou bem a decisão que o prejudicou foi de uma elevação que não merecia um, mas sim dez cartões brancos”.

Um golo para cada um
O crescimento do cartão branco foi feito numa lógica de exagero inicial — para divulgação —, antes de uma fase de apelo à sensatez e ao maior “filtro”. Um árbitro lisboeta deu um exemplo desse exagero, contando que, uma vez, deu um cartão branco a dois massagistas de equipas diferentes que estiveram a ajudar um jogador lesionado até que chegassem os bombeiros. Neste tipo de caso, como noutros, as associações distritais procuraram instruir os árbitros a serem selectivos na escolha dos momentos a premiar com cartão branco.
Algo mais na linha, por exemplo, do dia em que um árbitro conta que premiou uma equipa que deixou o adversário marcar golos. No caso, foi um jogo de futebol de sete em queuma equipa só tinha cinco jogadores e todos bastante pequenos a nível físico, em comparação com os adver- sários. E a outra equipa deixou que todos os jogadores adversários mar- cassem um golo. Ou até o caso de um árbitro que diz ter exibido o cartão branco ao treinador de uma equipa que, com o adversário com apenas dez jogadores disponíveis, recusou jogar em superioridade numérica, alinhando também com dez.

Se aos árbitros se pede, por estes dias, equilíbrio e sensatez na aplicação do cartão branco, para que não seja banalizado, aos clubes, treinadores, jogadores e adeptos pede-se que haja mais comportamentos merecedores de “prémio”. Uma compensação (por exemplo a nível de ponto extra na classificação, como critério de desempate, como um desconto na inscrição na época seguinte ou até a nível de prémio em dinheiro) seria bom ou mau para o futuro do cartão branco? Duarte Gomes acredita que é uma via possível e avança que até já tem sido aplicada. “Já há esse tipo de compensação. Sei que em Lisboa se premiava escalões mais jovens em termos classicativos com o fair-play. E isso é importante, porque torna isto em algo competitivo, mas sem ser pelo resultado”.

O que falta para a I Liga?
Se tudo isto parece ser positivo, porquê a resistência e demora actuais para pôr em prática a medida no futebol prossional? Segundo o IPDJ, falta, essencialmente, uma comunhão tripartida entre os preceitos das Leis do Jogo, a cargo do International Board (IFAB), a UEFA e a Federação Portuguesa de Futebol. No fundo, de vontade institucional.

Outra dimensão a considerar, além das autorizações europeias, é a parte humana de quem tem o dever de utilizar o cartão: os árbitros. Nesse sentido, pode ser útil contar um episódio num jogo de iniciados em Lisboa, no qual o árbitro assinalou um pontapé de penálti contra a equipa B. Após ser rodeado por adversários, o jogador da equipa A envolvido no lance chegou ao pé do árbitro e disse “não era penálti”, com os olhos já algo húmidos, perto do choro. O árbitro seguiu o repto do jogador, reverteu a decisão e exibiu o cartão branco ao atleta.

Ao intervalo, o treinador da equipa A disse ao árbitro que tinha feito bem em reverter o penálti, ainda que fosse a seu favor, mas que não só tinha mesmo sido penálti como o jogador em causa só disse o contrário porque foi pressionado. Explicou que o atleta tem um problema de autismo e vacila quando é pressionado, porque odeia conflitos. E avançou que aquilo já tinha acontecido noutros jogos.

Serve esta história para ilustrar que nem só no momento de punir deve haver sensibilidade dos árbitros — também para premiar essa valência especíca deve estar presente. É, portanto, uma dimensão adicional e incomum ao trabalho de um árbitro que está a dirigir, por exemplo, um derby escaldante da I Liga, com um ambiente adverso, e que de repente pode premiar algo positivo.

Estão os árbitros disponíveis para adicionar este plano ao seu trabalho? Duarte Gomes, ex-árbitro, crê que não existirá qualquer resistência dos árbitros, bem pelo contrário. “Dos árbitros, a resistência será zero. É uma oportunidade para fazerem parte do espectáculo pela positiva e não apenas como juiz castigador. Dá ao árbitro possibilidade de se humanizar e de se mostrar como alguém que sabe valorizar um gesto. Para o jogador é bom ser valorizado, mas para o árbitro também é um orgulho reconhecer essa boa prática”.

Árbitros, jogadores e treinadores querem o cartão branco. Só falta con- vencer quem manda.

Fonte: Público