O Jornal
i foi acompanhar as duas sessões práticas do curso de formação de árbitros da
Associação de Futebol de Lisboa.
Aquele
grupo à nossa frente é uma das próximas gerações da arbitragem portuguesa, num
curso que começou a 5 de Novembro e termina hoje com as duas avaliações:
escrita e física. Dentro de campo está também Agostinho Correia, o dirigente
responsável pela formação. Acompanhado por vários monitores e árbitros, tem um
papel pouco activo enquanto a sessão se desenrola. Limita--se a observar,
comentar e perceber até que ponto poderão estar ali os sucessores de nomes como
Duarte Gomes, Pedro Proença, João Capela e Hugo Miguel. É também ele que nos
faz uma primeira apresentação ao curso e responde à primeira pergunta: afinal
de contas, o que faz com que alguém queira ser árbitro? "Bom, se calhar, o
que eu vou dizer não é verdade, mas o ter pouco jeito para jogar à bola."
Agostinho, com 62 anos feitos nesse dia, ri-se e reconhece que, pelo menos no
caso dele, foi assim em 1976. "Nunca tive jeito para isso, tenho dois
tijolos nos pés. Vi um anúncio no jornal 'Record' e decidi fazer o curso. Mas,
na altura, o mais importante era empinar as leis; agora é mais rápido, é
diferente", explica o dirigente, que se manteve como árbitro durante
"15, 16" anos e depois ainda foi observador dos escalões nacionais
por mais 19.
A
AFL precisa de árbitros, mas não tem capacidade para fazer publicidade em meios
de grande divulgação. O método mais utilizado passa por utilizar os núcleos
espalhados pelo distrito e o arranque é feito quando se atinge um número
satisfatório de candidatos. Este ano, foram à volta de 60 e pagaram, quase
todos, 40 euros. Os adolescentes até aos 17 anos ficam isentos do pagamento, ao
abrigo de uma estratégia delineada para cativar os jovens e tornar a arbitragem
mais atractiva. Qualquer interessado entre os 14 e os 32 anos pode
candidatar-se, abrindo-se uma excepção para quem tenha até 36, desde que
apresente um passado de atleta federado. Ainda assim, as expectativas de
progressão, neste caso, são nulas, já que para chegar, por exemplo, a escalões nacionais,
é preciso começar a carreira com um máximo de 26 anos. "Se calhar, metade
dos que hoje estão aqui já não o conseguem", explica Agostinho Correia.
Indiferentes
à matemática da progressão e às expectativas de uma carreira que agora até pode
chegar ao profissionalismo, os formandos vão fazendo o seu trabalho dentro de
campo. O grupo está dividido em dois e, no lado da bancada principal, é Manuel
António Correia, coordenador da Comissão Técnica, quem assume as rédeas durante
um exercício direccionado para a actividade de árbitro assistente. "Estica
o braço!", "O braço é paralelo à perna!" e "Encosta a
bandeira ao corpo!" são alguns dos conselhos mais repetidos de uma forma
enérgica que, mais tarde ou mais cedo, se percebe ser a sua forma de estar.
Um a
um, os candidatos são postos à prova, enquanto os restantes vão observando, num
misto de sorrisos com o ar desajeitado dos colegas e preocupação pela vez que
está a chegar. A estreia não é fácil e obriga a cumprir religiosamente um
conjunto de truques para que toda a acção seja mais harmoniosa. A bandeirola
segue imprescindivelmente do lado do campo, a mudança de mão é sempre feita na
zona do ventre, o dedo indicador deve estar esticado para facilitar o ângulo
perfeito para assinalar o lançamento lateral, a falta, o pontapé de baliza, o
canto ou o fora-de-jogo. E tudo isto tem de ser feito, repete Manuel, "com
elegância e com a bandeira desfraldada". Pelo meio, segue-se um conselho
para o futuro: "Em campos em que a bancada esteja mais próxima e haja
espectadores agressivos com chapéus-de-chuva ou com outros objectos, podem
andar do lado de dentro do campo." Percebe-se que transpira paixão pelo
que faz e vai sugerindo aos candidatos que treinem em casa, em frente ao
espelho. "Para mim, a arbitragem é um desporto como outro qualquer e pode
ser praticada no parque", diz-nos durante o exercício, regressando
rapidamente à correcção do que cada um vai fazendo. "Olha lá o que estás a
fazer. Achas que a bandeira é assim? Estica lá bem o braço! Mais! Mais! É
isso."
UNIDOS
POR UM DESEJO A
meio da manhã há um intervalo e as bolas saltam finalmente para dentro de
campo. É o momento ideal para perceber até que ponto se confirma a brincadeira
inicial de Agostinho Correia. Enquanto uns aproveitam para ir ver o jogo que
decorre no campo de cima, outros recreiam-se com a bola. Conclusão? É, de
facto, um grupo heterogéneo, onde a qualidade técnica pouco importa para
estarem ali. Na verdade, só a vontade de vir a ser árbitro os une. A pausa é
também o momento ideal para falarmos com dois candidatos: o mais novo e o mais
velho.
Gonçalo
Serzedas enverga o colete com o número 36 e percebe-se facilmente que é o mais
novo. Com 14 anos feitos em Junho, fala ao i com uma timidez própria da
idade. O discurso sai engasgado num primeiro momento, mas não hesita na altura
de dizer que sempre quis experimentar o que era estar no lugar de árbitro - o
avô, José Manuel, ter trabalhado no Conselho de Arbitragem, influenciou. Por
mais estranho que possa parecer, por causa da idade, estar ali é uma vontade
que já foi travada no passado: "Quando tinha 12 anos, uma senhora que
trabalhava na Associação de Futebol de Lisboa falou-me do curso, mas depois eu
soube que ainda não podia."
Antes,
o limite inferior era de 16, mas a redução para 14 permitiu a Gonçalo realizar
o desejo. O irmão mais velho rejeitou o desafio, mas ele não pensou duas vezes.
Ser árbitro não é uma paixão partilhada pelos amigos da sua idade, mais
preocupados em jogar futebol do que em apitá-lo dentro de campo, e por isso
enfrenta algumas reacções mais complicadas. "Gozar? Não, não é bem gozar,
mas põem em causa a minha vontade. 'Queres mesmo ser árbitro? É uma granda
treta!', dizem-me." Imune a essas opiniões, o adolescente que até jogou no
São Pedro (Ericeira) tem um objectivo bem definido: "Gostava de ser
árbitro internacional."
O
sonho de Gonçalo não está ao alcance de Hélder Alves, o "veterano" do
curso, com 36 anos. O ex-jogador do Loures nas camadas jovens também passou
pelos seniores do Pinheiro de Loures e pelo futsal, e é graças a essa
experiência que pôde recorrer à alínea excepcional. "O desporto é a minha
vida e também tenho treinado algumas equipas, apesar de não ter o curso de
treinador. Até agora, não tinha conseguido conciliar as duas coisas, mas um
colega falou-me deste curso e da possibilidade de entrar mesmo com esta
idade", começa por explicar.
O
corte de cabelo, a voz e a postura que apresenta durante os exercícios e
enquanto fala connosco dão indícios do que faz na vida. Hélder é militar da GNR
e a impossibilidade de progredir na arbitragem não o afecta: "O objectivo
é, principalmente, passar de crítico a conhecedor", confessa, criticando a
falta de conhecimento generalizado que se estende a jogadores e treinadores. O
lado profissional pode ser uma mais-valia nesta aventura que tem pontos de
comparação: "É preciso saber impor autoridade, saber falar e aplicar as
leis. A comunicação é sempre importante." E depois, quem sabe, ser também
"um modelo para os mais novos".
CHEGAR
É FÁCIL, MANTER NÃO Atrair
interessados para o curso de árbitros não é o mais difícil. No início, os
grupos costumam ser numerosos e o grande problema está em conseguir com que se
mantenham com o passar das aulas. "Há muitas desistências. Se passado uns
dias não gostam, vão-se embora. Temos alguma dificuldade nessa manutenção. E,
mesmo depois de acabarem o curso, continua a ser difícil. É preciso criar o
bichinho, é preciso incentivar", garante Agostinho Correia. O coordenador
fala por experiência própria, lembrando o passado dos filhos que, com 14 anos e
sem carta de condução, moravam em Palmela e tinham jogos em Torres Vedras.
O
modelo do curso sofreu alterações com o novo plano nacional de formação e
pretende dar uma bagagem mais diversificada. Dessa forma, as unidades
curriculares incluem História das Competições, Função e Estatuto do Árbitro,
Introdução às Ciências do Comportamento, Técnicas de Arbitragem, Noções Básicas
de Saúde, Alimentação e Nutrição, Legislação e Segurança e Metodologia do
Treino. A alteração faz também com que a entrada em competição seja mais
gradual. "Antigamente eram mandados logo para as feras. O objectivo,
agora, é fazer com que sejam mais acompanhados durante o estágio, nas presenças
nos núcleos e nos centros de treino. Desta forma há mais controlo e também se
torna mais apelativo", explica Agostinho Correia. "É um plano
ambicioso que visa a profissionalização", completa Manuel António Correia.
Os
responsáveis pela arbitragem esperam que o novo plano possa estancar as
dificuldades que têm vivido. Recentemente, vários árbitros foram afastados por
faltarem a jogos e treinos, e as causas são um pouco transversais a tudo o que
se passa em Portugal, na opinião de Agostinho Correia: "Há uns que deixam
de ter hipóteses de subir de escalão e abandonam. E a conjuntura económica também
é difícil." Apesar disso, a AFL é das que paga melhor e os valores por
jogo podem ir desde os 14 euros, nos escalões mais jovens, até aos 45, em
encontros do Pró--Nacional (divisão mais alta a nível sénior distrital). Carlos
Esteves, presidente do Conselho de Arbitragem, conta ao i que são pagos
a árbitros cerca de 70 mil euros por mês, entre os prémios de jogo, os
quilómetros das deslocações e os subsídios de refeição, quando existem.
DUAS
SEMANAS DEPOIS... O
curso parece estar a ser um sucesso. O Futebol Benfica volta a acolher uma
sessão prática e o grupo mantém-se inalterado. Não falta ninguém e uma
desatenção até faz com que os dois últimos a chegar comecem a aula sem o
colete. A insistência já não é tanto nas tarefas do árbitro assistente e foca-se
também nos desafios do penálti e da capacidade de lidar com jogadores
problemáticos. Aí, são os próprios futuros árbitros a encarnarem esse papel
durante uma peladinha em que acontece tudo, desde simulações a tentativas de
intimidação. Os lances são interrompidos com frequência para debater o que deve
ser feito, enquanto a linha lateral tem seis ou sete candidatos a fazerem de
assistentes. "Há ali um que marca sempre para o lado contrário",
desabafa um dos "jogadores", entre risos.
O
grupo está mais solto e confiante, e dá razão ao que Manuel António Correia nos
tinha dito duas semanas antes: "À segunda aula começa-se logo a perceber
quem terá jeito." Esse reencontro é também o momento ideal para esclarecer
o alcance das duas tiradas que nos ficaram na mente durante esses dias: o
treinar em frente até ao espelho e a prática num parque.
"A
arbitragem tem de ser vista como uma qualquer modalidade e pode ser praticada
num parque aberto", repete-nos. Acima de tudo, lembra que não é preciso
que haja um jogo para haver arbitragem e que as decisões não são obrigatórias
durante o treino, apenas o processo de as tomar. "O que se pode treinar? A
sinalética, a forma de usar a bandeirola, a movimentação em conjunto com o
outro árbitro, a corrida de costas, a movimentação lateralizada..."
enumera. A questão do espelho baseia-se no mesmo conceito, e não numa ideia de
vaidade. "Quando se pratica em frente ao espelho, conseguimos ver como
estamos a fazer e como podemos melhorar. A repetição leva à perfeição e em frente
ao espelho temos essa possibilidade. Mas também pode ser testado em frente à
mulher ou à namorada. Pode ser partilhado com a família."
Fonte: i