Autor

Duarte Gomes

Data: 08/10/2020

Ofende-se, ameaça-se e humilha-se. Vale tudo para ganhar uns likes, lols ou polegares para cima

O ex-árbitro Duarte Gomes escreve sobre as consequências da nova sociedade: “Hoje toda a gente diz o que quer, como, quando e onde quer. O mundo vê, lê e ouve, sem saber bem se é verdade ou mentira. Sem saber se acredita ou desconfia”.

Será que as pessoas são mal formadas e culturalmente desprovidas de valores ou a postura que por vezes têm é apenas fruto da manietação exterior a que estão sujeitas?

Será que são intrinsecamente más ou estão cansadas, desiludidas, conformadas? Será que é o acesso fácil a meios tecnológicos que as transforma numa espécie de predadoras virtuais, sequiosas de sangue e capazes de aniquilar tudo o que lhes aparece à frente?

Estas dúvidas não são, obviamente, extensíveis a toda a gente. Há pessoas genuinamente boas. Felizmente.

Mas não é descabido afirmar que a voz que se faz ouvir mais alto é quase sempre a voz nociva. A que critica e deixa abaixo. A que espezinha e magoa.

É certo que este tipo de comportamentos – ora estratégicos, ora inconscientes – não são de hoje nem de ontem, mas têm agora outro peso e visibilidade.

Os meios à nossa disposição são cada vez mais evoluídos. Têm alcance universal imediato.

A formulação de “opiniões fidedignas e avalizadas” está à distância de um post ou de um tweet. À distância de um clique.

Hoje toda a gente diz o que quer, como, quando e onde quer. O mundo vê, lê e ouve, sem saber bem se é verdade ou mentira. Sem saber se acredita ou desconfia.

Hoje não há filtros. Criam-se rótulos em poucos segundos, embaraça-se gente de bem, destroém-se famílias, incriminam-se inocentes… tudo em nome da gula pela opinião na net. Tudo em nome da vontade de brilhar momentaneamente.

Estes são dias perigosos. Dias sem regulação ou limites. Dias sem consequências visíveis.

Ofende-se, ameaça-se e humilha-se. Vale tudo para ganhar uns likes, lols ou polegares para cima. A auto-estima agradece e a malta adormece com um sorriso diferente. Adormece a sentir-se especial… por tratar mal. Não é normal.

Os porquês? Sabe Deus.

Carência? Complexo de inferioridade? Solidão? Forma de chamar à atenção? Pequenez de espírito? Melancolia? Que importa?

O que importa é que a informação credível, séria e objetiva nunca foi tão mal tratada.

Nunca como agora o valor das coisas valeu mais do que as coisas com valor e essa é uma responsabilidade nossa. De todos nós.

Este é um problema real, atual e transversal. É nacional e intercontinental.

E é um problema sério porque, entre tantas outras coisas, compromete o futuro. Compromete a educação dos nossos filhos e dos filhos deles. Compromete os seus valores e princípios. A sua interação com os outros.

Se pensarmos bem, somos a última geração que nasceu na era da “pré-tecnologia”.

A minha filha, que tem 10 anos, já mora num mundo diferente do meu e as vossas filhas e filhos também.

A dinâmica instalada é avassaladora e crescente. Não é fácil travar onlines e redes sociais, clickbaits e inteligências artificiais.

Aos governos do mundo cabe a missão de educar, regular e travar excessos. Cabe a missão de cuidar de quem deles espera cuidado.

A nós, pais e mães, cidadãos conscientes, adeptos de uma vida com ética, pessoas de bem, cabe a obrigação moral de contrariar a face negra desta realidade.

As plataformas que incentivam o ódio, a rebelião e o extremismo são as mesmas que encontram dadores compatíveis, meios para salvar pessoas e formas de juntar famílias.

Tudo o que pode destruir, também ajuda a construir. É tudo uma questão de posicionamento.

O nosso é simples: não somos reféns de nada, porque os reféns não têm escolha e nós temos.

É preciso aprender a discernir. É preciso contornar o que é negativo e valorizar o que é positivo. É preciso aprender a conviver com o lado obscuro dos tempos, não permitindo que ele perturbe o que é essencial nas nossas vidas. O futuro, afinal, está nas nossas mãos.

Fonte: Expresso