Existem sentimentos que os árbitros conhecem e com os quais lidam com regularidade independentemente da experiência que tenham. Sábado à noite, após o apito para o final do clássico Porto – Sporting, Hugo Miguel terá vivenciado um misto de emoções: alívio, angústia e alegria.
Alívio. Alívio porque tinha terminado, para si, o jogo. Sim, pode parecer estranho que alguém que goste tanto de uma atividade queira que esta acabe depressa, mas há momentos em que este sentimento está presente. Desde que soube que seria o árbitro desta partida, e mesmo antes disso, Hugo Miguel sabia da importância deste jogo para os clubes envolvidos e também para a sua carreira, entenda-se, classificação. Talvez ainda mais importante, sabia das habituais consequências que uma arbitragem menos conseguida traria para a arbitragem portuguesa e para a forma como os adeptos de futebol olham para os árbitros. Sentiu alívio porque tinha chegado ao fim do jogo e todos os jogadores e elementos oficiais o cumprimentaram sem grandes queixas. Sentiu alívio porque “conseguiu” acabar o jogo com vinte e dois jogadores em campo. Sentiu alívio porque “talvez” não tivesse sido o protagonista principal deste jogo.
Angústia. Acima referi que, ao apitar para o final, o jogo tinha terminado para o árbitro. Isto porque existe um outro jogo que começa após esse apito. Um jogo angustiante para a arbitragem. É o jogo das repetições, dos slow motions, dos zooms, das palavras de quem pode precisar de justificar más decisões ou derrotas, das televisões que precisam de audiências e dos jornais que precisam vender. É um jogo que o árbitro não pode controlar, mas no qual tem grandes probabilidades de ser réu. Hugo Miguel conhece esse jogo e está preparado para lidar com ele sem se deixar afetar... demasiado.
A angústia advém também da sua experiência como árbitro de primeira categoria. O Hugo, tal como todos os árbitros que já dirigiram jogos com transmissão televisiva, sabe que as certezas do que viu, e consequentemente decidiu, podem ficar desfeitas perante uma imagem que a televisão vai mostrar. Após o apito final o Hugo ter-se-á questionado: “O Palhinha carregou o Brahimi e eu apliquei a lei da vantagem num lance que veio a dar golo. Fantástico! Mas terei visto bem o lance?”; “Soares caiu na área em lance com o Semedo. Pareceu-me que o contacto não era suficiente para ser falta... terei decidido bem?”; “E aquele remate do Adrien... Terá sido bola no braço de Coates ou terá sido braço na bola?...”. Nas sms, enviadas por amigos para o telemóvel que tem no balneário e nas quais se lê algo como “Tudo certo!”, “Grande apitadela!!” ou “Sem falhas nos lances cruciais!”, o Hugo terá encontrado o primeiro calmante para a angústia. Depois de ver e rever todos os lances importantes do jogo, a angústia quase desaparece. Na próxima sexta-feira, quando receber a avaliação final do seu trabalho, terá, verdadeiramente, terminado o jogo e a angústia.
Alegria. A angústia e o alívio que acima descrevi não apagam nem diminuem a alegria de fazer o que se gosta. Quando confirmamos que fizemos bem algo que à partida seria muito difícil, essa alegria é ainda maior. O Hugo esteve onde milhares de jovens árbitros sonham poder, um dia, estar. Ele sabe disso. Sabe que é um privilegiado. Faz o que gosta, ao lado de quem gosta. Por tudo isto vive a arbitragem como ela deve ser vivida: com alegria!
Iván de la Peña, jogador referência do Barcelona dos anos noventa, disse um dia: “Há jogos em que ao entrar em campo parece um sonho estar ali. Quando o jogo termina, sinto que teria sido um pesadelo se eu não tivesse estado.”. Hugo, a arbitragem agradece-te por, no passado sábado, teres sido um Ivan De La Peña.
Fonte: Público