Nada disto é novo ou sequer uma surpresa. Nos últimos anos multiplicam-se os casos de árbitros ameaçados ou intimidados. Há um ano, vários membros dos Super Dragões dirigiram-se ao restaurante do pai de Jorge Ferreira, em Fafe, dias depois de uma contestada exibição do juiz num P. Ferreira-Benfica. No final de 2013 e início de 2014, dois talhos propriedade de Manuel Mota, em Braga e Guimarães, foram vandalizados. O incidente mais grave e mediático aconteceu em agosto de 2011, quando Pedro Proença foi agredido no shopping Colombo, em Lisboa, por um adepto do Benfica.
Nem todos os casos de intimidação chegam ao conhecimento público, até porque já fazem parte das rotinas dos árbitros. “Fui ameaçado de morte vezes sem conta, por SMS, telefonemas. Chegaram a tocar a campainha de minha casa às 4 da manhã. Riscaram-me o carro e um dia viraram-lhe um contentor do lixo em cima. Sempre adeptos dos clubes grandes”, conta Duarte Gomes, que deixou a arbitragem há um ano, após 19 no 1º escalão. Estas nem sequer foram as situações mais complicadas para o antigo juiz, que tal como muitos outros colegas viu os seus dados pessoais expostos na internet em 2012. “Tive uma ameaça muito concreta através de e-mail, à qual a polícia deu importância, de alguém que sabia as rotinas da minha filha na creche, nomeadamente morada e horários. Na altura, a minha filha tinha apenas 2 anos...” A intervenção das autoridades acabou por evitar que o árbitro fosse obrigado a mudar a filha de escola, mas os meses seguintes foram de cuidados redobrados: “Passámos a ter muita atenção aos horários para a levar e buscar e íamos levá-la dentro da sala. Já viu o que isso interfere com a privacidade e com a vida pessoal de um cidadão?”
O madeirense Marco Ferreira é outro dos antigos árbitros que admite ter sido ameaçado: “Recebi ameaças através de mails, redes sociais e até mesmo por carta, para a minha morada.” O juiz, que abandonou a arbitragem em 2015, diz que este tipo de incidentes “acontecem sobretudo após nomeações para os jogos dos chamados três grandes”, criticando o facto de a intimidação ser já algo considerado “normal e recorrente” até pelas próprias autoridades: “Muitas vezes presenciam essas ameaças dentro do próprio recinto desportivo e não tomam qualquer medida.” Outro madeirense, Elmano Santos, deixou a arbitragem há cinco anos e ainda recebe telefonemas anónimos. “Recebo chamadas de pessoas que me dizem para me portar bem no fim de semana!”, diz o antigo juiz. O insólito da situação faz com que Elmano Santos não leve demasiado a sério as ameaças, ainda que a situação seja incómoda. “Aquilo que tenho feito sempre que os números estão identificados — há quem nem sequer tenha cuidado com isso... — é dar conhecimento às entidades policiais”, explica. Elmano Santos diz nunca ter sentido “a segurança em perigo” ao longo da carreira, mas que era normal ser abordado e insultado na rua por desconhecidos. “Mas os árbitros têm de estar preparados para isso”, reconhece.
Preparado é o nome do meio de Pedro Henriques. O militar de 51 anos, que largou o apito em 2010, diz nunca ter tido de lidar com “situações muito graves”, até porque decidiu desde cedo antecipar qualquer hipótese de conflito. “Quando tinha um jogo com um dos grandes fazia todo um planeamento para a semana seguinte, para o caso das coisas não correrem bem”, começa por contar o antigo juiz, hoje comentador: “Um dos sítios onde somos mais vezes abordados é nas estações de serviço. Então, o que eu fazia era atestar o carro para durante 4 ou 5 dias não precisar de ir a uma bomba da gasolina. Ninguém me via num café, a jantar fora. Não ia ao supermercado, pedia a alguém para fazer as compras por mim ou para ir buscar a minha filha ao infantário.”
Duarte Gomes sublinha que “os árbitros sempre tiveram bom senso” na hora de avaliar situações de perigo. “Ninguém me via numa discoteca num sábado à noite se no domingo tivesse um jogo decisivo. Evitava também centros comerciais com muita gente nos dias antes dos jogos, principalmente se a nomeação tivesse sido polémica ou se o momento do clube não fosse bom”, explica. Já Elmano Santos deixou de ir a estádios, como adepto. “Durante 10 anos não o fiz, por uma questão de segurança, para evitar situações pouco agradáveis. Aos poucos comecei a voltar, mas ainda sou reconhecido e às vezes ainda sobra para mim”, conta o antigo juiz do Funchal, que numa das situações em que foi incomodado através de chamadas anónimas foi “obrigado” a encontrar uma solução mais criativa: “Disse à pessoa que estava a ser chateado porque tinha o mesmo nome do árbitro Elmano Santos, mas que não tinha nada a ver com ele e que inclusivamente não gostava nada dele. Chamei-me nomes, até! Acabaram por me pedir desculpa.” Para grandes males, grandes remédios.
Adeptos são os menos culpados
Entre os três juízes há a certeza que as polémicas com as arbitragens são cíclicas e, por isso, a situação atual não os surpreende. “Isto arrasta-se há anos. Acontece sempre por esta altura, perto do fim da 1ª volta, com o objetivo concreto de pressionar os árbitros”, refere Elmano Santos. Duarte Gomes vê a crítica como normal, até ao ponto em que se coloca em causa a “privacidade e integridade física” dos árbitros: “É necessário fazer uma reflexão sobre o que levou a isto, com os todos os agentes. Os clubes, os próprios árbitros — que devem refletir sobre os seus erros — e a imprensa, que por questões comerciais e de audiências dá voz a quem muitas vezes faz um aproveitamento sanguinário dos temas da arbitragem.”Pedro Henriques saúda os esforços do Conselho de Arbitragem para reunir com autoridades e clubes (“terão um efeito dissuasor”), mas lembra que as ações “não pode ser reativa” e que as reuniões “deveriam ser periódicas” e não apenas quando a tensão cresce. “Os clubes só se importam com a arbitragem quando há um penálti mal assinalado, depois esquecem”, diz o militar. Duarte Gomes segue pelo mesmo diapasão. “Receio que amanhã já se comece a assobiar para o lado. E qualquer dia há um ato tresloucado”, alerta, falando de um caso recente no Chipre, onde um árbitro descobriu um artefacto explosivo no carro.
Duarte Gomes culpa as declarações acaloradas dos dirigentes desportivos e de alguns comentadores na comunicação social pelo clima de tensão que se vive. Os adeptos acabam por ser os menos culpados. “O adepto é o elo mais fraco. Coloca as suas frustrações no futebol e vai beber o ódio a declarações injuriosas que vê no Facebook, na televisão e na rádio”, sublinha. “As pessoas têm de compreender que o erro faz parte. Não me falem em erros anedóticos de árbitros, porque os jogadores também os fazem”, diz ainda o antigo árbitro: “As pessoas acham que um árbitro erra e passa impune. Não, na semana seguinte não arbitra e no final do ano pode ser despromovido, com os problemas desportivos e financeiros que isso acarreta.” Pedro Henriques lembra que o árbitro é sempre “o agente mais penalizado” no futebol: “Costumo dizer que um árbitro recebe ‘à peça’. Se eu cometo um erro, não sou nomeado e, por isso, não recebo. Cheguei a ser suspenso 40 dias numa altura em que decidi falar para defender a minha honra. Qual é o jogador que falha um golo ou o treinador que erra uma substituição que fica 40 dias sem receber?”
Ainda assim, os árbitros não querem sacudir responsabilidades. O atual quadro de árbitros da 1ª divisão levanta algumas questões. “É um quadro muito heterogéneo: por um lado temos árbitros muito experientes, cuja imagem está algo desgastada nos clubes e opinião pública e por outro temos juízes muito jovens, que precisam de encontrar o seu espaço de formação”, lembra Elmano Santos, que frisa, no entanto, que “os clubes não têm paciência na hora de dar tempo aos árbitros para crescerem”.
Cronologia
No dia 5, e na sequência das polémicas arbitragens nos jogos do FC Porto e Sporting na Taça da Liga, dois membros da claque Super Dragões terão alegadamente ameaçado Artur Soares Dias à entrada do centro de treinos de árbitros da Maia, depois da nomeação do juiz da Associação do Porto para o jogo Paços de Ferreira-FC Porto, para o campeonato.Vinte e quatro horas depois do incidente com Artur Soares Dias, José Fontelas Gomes, presidente do Conselho de Arbitragem da FPF, reuniu-se com a PSP, que garantiu a adoção de novas medidas de segurança de acordo “com a situação geral e situação concreta de cada árbitro e equipa de arbitragem”.
Na última quarta-feira, o Conselho de Arbitragem (CA) promoveu uma reunião de trabalho com 29 dos 35 emblemas das ligas profissionais (seis faltaram), com o objetivo de serenar a tensão e a onda de críticas dos clubes, bem como discutir sugestões para diminuir os erros de arbitragem. Na reunião discutiram-se alguns lances polémicos das últimas semanas, nomeadamente do Benfica-Sporting, de 11 de dezembro, com o CA a defender as decisões do árbitro Jorge Sousa.
Da reunião saiu também o compromisso do Conselho de Arbitragem para que os resultados dos relatórios dos árbitros passem a estar disponíveis para consulta por parte dos clubes.
Fonte: Jornal Expresso (Lídia Peralta Gomes)